sexta-feira, 23 de março de 2012

Hav


Jan Morris (2006). Hav: comprising last letters from Hav, Hav of the Myrmidons. Londres: Faber.

A literatura de viagens pode ser lida como uma elaborada forma de ficção. Afinal, que provas temos que um escritor este realmente no lá que descreve? Saltou de um avião para a poeira e arquitectura exótica ou reconstruiu na sua mente uma imagem de um além da fronteira a partir de imagens e leituras? Instintivamente sabemos que não é assim, não seria possível ser assim. E no entanto a literatura de viagens não é um retrato fiel de locais, é uma reconstrução feita a partir das percepções do vajante-escritor.

Ou então podemos ter algo como este intrigante relato a duas épocas sobre Hav, esse curioso enclave na costa turca. Como o descrever? Langor levantino com misturas de resquícios de impérios perdidos na história, onde seitas esquecidas ainda dominam o espectro intelectual e político. Não um cemitério de impérios, antes um daqueles portos que o devir histórico, as leis dos mercados e as andanças das gentes transformaram em mesclas culturais únicas. Pense-se uma colisão a baixa velocidade entre Gibraltar, Tânger, Malta, Rodes, Macau e o Mónaco e começa-se a conceber o carácter de Hav.

Como lá chegar? Apenas pelas palavras contidas entre a capa do livro, pois Hav é um local ficcional criado pela escritora de viagens Jan Morris para tentar, como observa no posfácio, dar sentido às experiências que relatava e mostrar que o mais arguto dos escritores não consegue dar a conhecer o carácter profundo das terras que visita e regista. A ficcionalidade de Hav, moderna Ruritânia, não impediu que curiosos viajantes se dirigissem a agências de viagem em busca de um bilhete para o enclave. Ficção, mais real que a realidade.

Hav vive de dois momentos: a descrição de um poeirento entreposto tradicional, langoroso e esquecido pelo tempo, e o seu perfeito contraste, uma reflexão sobre a hipermodernidade estéril de locais como Singapura ou Doha, onde o arranha-céus e o ar condicionado esmagam o carácter tradicional. Morris descreve a sua ficcional Hav com um intervalo de vinte anos entre uma estadia prolongada na colorida velha sociedade e uma visita ao enclave após um bem sucedido golpe de estado que coloca no poder uma teocracia cátara (leram bem) que arrasa o antigo para o substituir por efémeros e impessoais paradigmas de modernidade.

Hav lê-se como literatura de viagens ficcional, como um passeio Borgesiano a Üqbar se Borges escrevesse como Paul Theroux. Mas ao criar um elaborado e verosímil mundo ficcional que reflecte sobre as dicotomias do mundo real contemporâneo coloca-se no campo da melhor ficção científica. Não tem naves espaciais e raios da morte, mas tem a percepção de como as contracções históricas modelam os locais e as gentes.