quinta-feira, 19 de abril de 2012

Indistinguível de Magia

Algumas vinhetas de surtos de futurismo: na edição mais recente da Popular Science Glenn Reynolds questiona a influência social das correntes literárias de ficção científica, observando que uma literatura de género mais utópica tem um papel importante, podendo influenciar futuros engenheiros e cientistas. Muitos dos mais importantes cientistas de hoje reconhecem que o sonho futurista da FC foi a centelha que os levou a escolher a carreira científica. Os transhumanistas, fieis a um pós-iluminismo científico de transcendência dos limites humanos através do progresso científico-tecnológico, olham para o paradigma NBIC (nano-bio-info-cogno) como definidor de uma sociedade global futura que já hoje se está a definir. Nano e biotecnologias, informática e ciência cognitiva, novos alicerces da aldeia global. Arthur C. Clarke observava rotineiramente que qualquer ciência suficientemente avançada é indistinguível da magia. Não é uma observação positiva. Se os objectos técnicos que nos rodeiam parecem mágicos, significa que não temos os conhecimentos suficientes para os compreender.

Vivemos numa era definida pelos produtos de um percurso cada vez mais rápido de evolução científica que se iniciou no iluminismo e atingiu massa crítica na segunda metade do século XX. A nossa sociedade e os padrões de comportamento alteraram-se influenciados por este extraordinário progresso. Reparamos em alguns, olhando para aspectos tão díspares como a utilização de telemóveis ou a pervasividade da internet mas já esquecemos vertentes infra-estruturais que assumimos já como adquiridas como acesso a electricidade ou a cuidados médicos que em eras anteriores pareceriam milagrosos. A tecnologia, como McLuhan gostava de apontar, não muda conosco. Muda-nos a nós, alterando sociedades e estruturas de pensamento individual.

Ao fim destes parágrafos, o que é que esta conversa tem a ver com o ensino das CTEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia, Matemática)? O meu ponto de vista é talvez mais etéreo do que o habitual em pedagogia. Mas olhemos para o conceito clássico de Clarke, e perguntemo-nos se queremos que a maioria dos nossos alunos viva numa sociedade futura em que utilizam tecnologias avançadas sem compreender os mais elementares conceitos em que se baseiam. Sabemos que na era contemporânea a inovação é fundamental para o progresso e sustentabilidade social, e sabemos igualmente que essa inovação assenta sobre criatividade e sólidos conhecimentos científicos. Seremos capazes de deixar a inovação nas mãos de uma pequena elite que ultrapassa constrangimentos ou procuraremos alargar essa capacidade a um largo espectro da população?

Quem acompanha mais de perto as movimentações do mundo digital conhece bem a assimetria entre o deslumbramento por produtos de consumo que reduzem os seus utilizadores às interacções previstas pelos criadores e uma cultura de inovação baseada na partilha livre de conhecimento e na ideia que quem utiliza uma tecnologia dever ter a possibilidade de a conhecer e modificar. Está em causa algo mais do que uma dicotomia entre usabilidade e conveniência versus curiosidade. É a própria cultura de partilha que propiciou uma fortíssima evolução tecnológica que está em perigo debaixo de visões excessivamente restritivas da propriedade intelectual.
E nisto tudo, qual o nosso papel na formação dos nossos alunos? Sabendo que o progresso social depende de novas gerações capazes e inovadoras, sabemos instintivamente que incentivar o conhecimento científico nas suas diversas vertentes e uma cultura interventiva de abrir, mexer, reconstruir e apropriar os objectos tecnológicos são factores determinantes do sucesso do futuro. Resta talvez saber se teremos capacidade para contrariar uma conjuntura contemporânea e pressões de algumas forças económicas que nos podem limitar a uma futura sociedade onde alguns inovadores dominam uma enorme massa de consumidores que vai olhar para a tecnologia como uma forma arcana de magia.

Doctorow, C. (2011). The Coming War on General Computation. https://github.com/jwise/28c3-doctorow/blob/master/transcript.md
Orca, S. (2010) Nano-Bio-Info-Cogno: Paradigm for the Future. http://hplusmagazine.com/2010/02/12/nano-bio-info-cogno-paradigm-future/
Reynolds, G. (2012). Why We Need Big, Bold Science Fiction. http://www.popularmechanics.com/technology/digital/fact-vs-fiction/why-we-need-big-bold-science-fiction-6705760?click=pp