domingo, 17 de junho de 2012

Prometheus


Comecemos já por esclarecer duas coisas: Prometheus não é o grande filme de ficção científica do início do século XXI, destinado a tornar-se clássico, e apesar das suas enormes falhas fiquei de forma algo masoquista apaixonado. Depois de tanta fanfarra de promoção, a prometer um clássico instantâneo e objecto de culto venerável pelos mais conhecedores do género, o que chegou ao grande ecrã foi uma profunda desilusão que ficou muito aquém quer do prometido quer do esperado por parte de Ridley Scott.

É indiscutível que o pior do filme reside no argumento. Incoerente e desconexo, consegue a proeza de ser argumento de ficção científica cheio de pontapés na ciência. O mais óbvio é o divinizar da teoria interessantemente surreal de Von Daniken, charlatão que não hesitava em falsear dados para provar a todo o custo a veracidade dos seus antigos astronautas. O filme vai mais longe do que rabiscos em cavernas Dogon ou estelas astecas e dá-nos ovnis gigânticos, ADN alienígena a rodos e uma estranha cena de criação em que um alienígena se dissolve aos gritos em pó para semear a vida num planeta. Talvez esta dissolução seja um acenar aos clássicos de horror em que Drácula termina como um amontoado de pó fumegante ao raiar do sol. Talvez. A verdadeira riqueza de Prometheus está na quantidade de referências visuais.

A baixa atenção dada à ciência no binómio ficção científica dá-nos verdadeiras pérolas de cretinice made in hollywood. Exploradores em planetas de atmosfera hostil que retiram os seus capacetes mal têm indicação de presença de oxigénio dentro de um edifício arruinado. Bactérias e vírus... não lhes ocorreu... a cientistas? Uma nave high-tech que precisa de entrar na atmosfera de um planeta para que se fique a saber a sua constituição. Uma análise espectrográfica seria talvez demasiado complexa para o público do filme? A minha favorita está nos dois anos de viagem sub-lumínica para um sistema solar próximo da Terra, quando o sistema mais próximo dista se bem me recordo quatro anos-luz do nosso planeta. Terá o argumentista passado tanto tempo a decifrar a prosa iluminadora de Chariot of the Gods que não teve oportunidade de pegar num simples manual de astronomia? Possivelmente o esforço mental de criação do conceito de uma super-língua alienígena que um andróide capaz de aprender todas as línguas terrestres não só decifra mas utiliza na forma verbal e simbólica tenha esgotado o brilhante autor do argumento.

Se a ciência sai deste filme com equimoses e um olho negro, a narrativa não se safa melhor. Este é um filme de tremendas incoerências estruturais onde as acções dos personagens não fazem sentido. A maioria age como se sofresse de um sério ataque de síndrome de personalidades múltiplas. A motivação é algo de pouco claro, algo que se torna aparente no briefing inicial em que a tripulação é informada das razões da viagem aquando da chegada ao seu destino e apesar do carácter bombástico das revelações ninguém se mostra minimanente espantado ou interessado. Porque, enfim, cientistas têm o hábito de se engajar em missões que duram anos sem saber o porquê delas e a hipótese de darem de caras com uma civilização alienígena não é suficientemente intrigante para que se levante um sobrolho.

O resvalar na ladeira continua. Temos um biólogo que entra em pânico quando vê os restos fossilizados de um extra-terrestre mas não hesita em tratar uma criatura serpentiforme como um animal bonitinho e sofre as viscerais consequências disso. Um geólogo capaz de mapear uma estrutura subterrânea alienígena que se perde dentro dela. Um arqueólogo que fica deprimido por chegar ao destino e não dar caras com os extra-terrestres cujos indícios milenares investigou... porque, enfim, como se sabe o sonho de qualquer arqueólogo é rastejar por uma caverna até encontrar uma colónia esquecida de neandertais numa galeria subterrânea ou deitar abaixo a parede de um templo e deparar-se com um bando de antigos egípcios dispostos a partilhar uma caneca de cerveja. O comandante e os pilotos, depois de um filme em que se comportam de forma errática, decidem no final aceitar uma uma missão kamikaze a pedido de alguém que mal conhecem fundamentado em dados incoerentes. E, claro, a mulher de armas do filme, ripley falhada deste descalabro de argumento, tem talvez a maior das incoerências comportamentais. Inseminada por ADN alienígena, realiza uma cesariana em si própria mas poucos minutos depois já anda a correr pelo filme fora de barrgia agrafada. Apenas o andróide tem direito a ser trabalhado enquanto personagem com profundidade, incluindo comparações a Peter O'Toole como Lawrence da Arábia e cenas reminiscentes da solidão espacial de 2001 antes da chegada a Júpiter. Sem esquecer um computador que cumprimenta o robot com um elegante hello, dave.

Uma lista dos acidentes do argumento seria demasiado exaustiva para aqui. Depois de uma cavalgada de incoerências e buracos narrativos, o filme termina com um previsível castigo aos maus da fita e numa nota de tipo à boleia pela galáxia com a heroína a sequestrar uma nave alienígena. Porque basta ter à mão um andróide decapitado para se ser capaz de pilotar uma nave desconhecida com tecnologias de controle desconhecidas com métodos de propulsão desconhecidos em direcção a um destino desconhecido.

Se o descalabro narrativo é gritante, há incoerências curiosas que têm sido debatidas e apontam para uma continuidade de Prometheus num corpus mítico relativo ao clássico Alien. A primeira que detectei está no planeta visitado, que não corresponde ao L-426 onde os infelizes tripulantes da Nostromo colidem com o ninho de aliens. Outras são mais subtis. A evolução da criatura alien, do estado inicial de ADN em gosma preta, passando por verme, criatura serpentiforme que infecta corpos humanos com resultados licantrópicos, mistura com ADN humano que impregna mulheres estéreis e gera lulas que crescem até dimensões cthulóides que eventualmente impregnam seres extra-terrestres e geram uma versão curiosamente humanóide do que posteriormente se tornará o visceral e formicida Alien que encanta audiências há décadas. Parece haver também uma referência velada à mitologia judaico-cristã com árvores de natal no espaço e concepções científicamente virginais, mas no meio da falta de clareza de um filme que de vez em quando nos recorda que se passa entre o natal e o ano novo isto passa muito despercebido.

Nem tudo é mau nesta catástrofe de filme. O que tem de bom é a razão que me deixou embevecido pela obra: um visual estonteante. É o único aspecto de Prometheus que não desilude, o único ponto onde o filme consegue chegar perto ao lugar almejado como obra de high SF. Vibra com uma estética irrepreensível, necessariamente ancorada em efeitos especiais mas mais centrada na construção de um universo visual do que na espectacularidade dos efeitos. Da Terra primeva às entranhas da estrutura alienígena em LV-223, passando pela hipertecnológica nave espacial, os cenários do filme deslumbram pela sua beleza.

A quantidade de referências aparentes dão aos espectadores mais conhecedores alimento para um verdadeiro banquete visual. Há coisas que esperamos: as visões de H. R. Giger realizadas em grande esplendor, bem como cenários orbitais de tirar o fôlego. Outras não são inesperadas, como as imperdíveis referências a Syd Mead: na cena onde conhecemos o idoso patrão da Weyland Industries, a imagem de terraformação replica na perfeição o estilo deste influente designer futurista, que de certeza também teve mão na concepção dos veículos que transportam os cientistas pelo planetóide. E algumas apanham-nos de surpresa. Ridley Scott recupera a iconografia que Giger e Moebius criaram para Dune, esse outro filme lendário que acabou por ter um visual totalmente diferente do originalmente planeado. Traços de Moebius são também visíveis em vários elementos do filme e até um ar classicista blakeano na criação dos engenheiros alienígenas. Também não podia faltar um carácter tentacular lovecraftiano aos monstros do filme.


Para mim, a mais espantosa das cenas, tão fascinante que me apeteceu levantar e bater palmas de pé, é a da aterragem da Prometheus em LV-223. A nave em plano contrapicado, enquadrada pela atmosfera de nuvens portentosas e o planeta gigante anelado. Impossível não olhar e sentir um resumo do melhor da ficção científica, a atirar para a cinematografia dos anos 50 com os seus foguetões a aterrar em planetas desconhecidos ou para as referências icónicas de Chesley Bonestell ao ilustrar o sistema solar na sua obra gráfica. Parece-me também impossível ficar indiferente à candura da cena em que o andróide se vê mergulhado num mapa holográfico do universo, que o rodeia num ambiente de magia. Visualmente bela, apesar de totalmente incongruente, e confesso que ainda não consegui perceber exactamente o que essas imagens me trazem à memória. Toques de Meliès? Planetários de cobre polido dos séculos XVIII e XIX?


Esta espectacularidade visual tem as suas falhas. Ocorrem-me duas. A Prometheus falta o carácter grítty que dava textura aos universos fantásticos de Alien e Blade Runner. O ar limpo e polido do filme aponta para 2001 no interior da nave, enquanto o planeta é um deserto asséptico. Falta pó, sujidade, óleo a verter, dando ao filme um lado hiper-real mais conducente ao de uma boa ilustração de ficção científica do que a uma obra com as ambições de Prometheus. Outra é gritante e envolve os interfaces digitais com que os personagens interagem. Alien  era um filme de época, onde o interface com a inteligência artificial que controlava a nave era verbal ou através de uma mainframe. Talvez os conceptores deste filme tenham achado que o conceito de interagir com computadores através de teclados e ecrãs pretos com texto verde seria demasiado estranha para a geração tablet e smartphone. Criam com isso um curioso anacronismo. Prometheus antecede cronológicamente Alien, mas a sua tecnologia é mais avançada. Talvez num próximo filme os autores resolvam a coisa através de alguma catástrofe singularitária. Com tanto pontapé no argumento, já nada surpreende.

Prometheus poderia ser um excelente filme de ficção cientifica senão pelo seu argumento falhado e atentados à ciência mais elementar. Todo a expectativa gerada à sua volta deslindou-se num enorme descalabro entre o esperado e o que resultou. Dentro da continuidade da mitografia Alien o filme aponta caminhos curiosos, mas a premissa banalizante da influência de antigos astronautas na geração da humanidade torna-se redutora. Redime-se um pouco pela qualidade do seu aspecto visual baseado em sólidas referências iconográficas, mas isto não chega para o tornar um bom filme. Apesar das falhas gritantes, consegue despertar aquela sense of wonder que fascina na Ficção Científica. Pena é que se espalhe em tudo o resto.