quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Vamiré


J.-H. Rosny (1905). Vamiré, Romance dos Tempos Primitivos. Lisboa: Livraria Editora.

"Passados alguns minutos, a donzela deixou de se defender. Mulher afinal, levada por um homem que a não tratava severamente, começou a sentir uma vaga curiosidade, deixando descansar a cabeça e a parte superior do peito no ombro de Vamiré."

Decididamente a passagem mais divertida de Vamireh, romance clássico dos irmãos de Rosny que sob o olhar do século XIX tenta reconstituir a vida primitiva através de uma aventura em que o epónimo Vamiré, corajoso caçador e prendado homem das cavernas, vive um périplo cheio de peripécias por entre as florestas primevas. Impelido pela curiosidade, desbrava as florestas, rapta uma futura apaixonada de uma outra tribo proto-humana, defende piedosamente um grupo de neandertais das ameaças de outros proto-humanos e dos seus cães domesticados, adopta um macaco de estimação, sobrevive a violentos encontros com animais selvagens e regressa enfim à sua tribo original, acompanhado de uma amada de outra tribo e com o prestígio de corajoso explorador, caudilho destemido e diplomata que conquista alianças com uniões amorosas.

Esta passagem, hoje capaz de arrepiar qualquer pessoa de bom senso pelo seu sexismo implícito e estereotipagem de género, mostra-nos o momento em que o herói rapta uma inocente rapariga de outra tribo. No terror do rapto e da fuga, ainda tem tempo para se sentir atraída pelo raptor. Mulher afinal, observa a tradução.

"Ao longe, na planície, via os homens da sua tribo, distinguia-lhes os gestos. Armados de grandes arcos e lanças velozes, cobertos de mantos tecidos com fibras de plantas e lã de animais, eram por ela confusamente cotejados com Vamiré, vestido com a pele do espeleu e armado de clava e zagaia; desejaria sem duvida que eles triunfassem, e contudo desejaria também salvar a vida do seu raptador. Uns longes de vaidade, a impressão feminina de que a violência do homem não era uma injuria, a força de Vamiré, a atracção do desconhecido, todas estas coisas vagueavam no seu espírito semibárbaro, não permitindo a fixidez de um desejo."

Apesar de datado, ultrapassado por mais de um século de descoberta científicas, e olhando as sociedades primitivas sob um hoje obsoleto espírito de fardo de homem branco misturado com a sensação de superioridade europeísta de fin de siécle, Vamiré é um retrato convincente dos tempos pré-históricos. Reflecte o estado da arte arqueológica da época de J.-H. Rosny e, como aventura de tom proto-pulp, vai empolgando o leitor com a sucessão de peripécias do périplo do corajoso bárbaro pré-histórico que armado com a sua curiosidade, inteligência, coragem e artefactos vence todos os perigos e mistérios da floresta primeva da noite dos tempos.

Vamiré pode ser lido online numa tradução portuguesa de 1905 no Projecto Gutenberg ou descarregado em vários formatos de ebook. Também está "reeditado" para epub e mobi na Amazon e Kobo a preços que parecem convidativos para quem não sabe que estes formatos também estão disponíveis gratuitamente no Gutenberg. Ora eis uma ideia interessante: pegar em livros gratuitos do Projecto Gutenberg, colocar uma imagem de capa e pôr à venda como edições fieis à edição original em diversas lojas online...