terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Primeiro dói, depois é indispensável


Este poster fotografado no Museu da Marioneta recorda a continuidade dos deslumbramentos perceptivos trazidos por uma sucessão histórica de novos meios de comunicação. Hoje olhamos para singelos brinquedos ópticos ou projecções de lanternas mágicas e, habituados a ilusões perceptivas mais elaboradas, sorrimos com a sua simplicidade. Custa-nos a acreditar que a sensação de imersão trazida por um ambiente em realidade virtual ou, mais acessível ao grande público, de um jogo de computador seja similar à que os nossos antepassados sentiam nos panoramas do século XVIII, essencialmente edifícios que continham detalhadas pinturas circulares e elementos decorativos para simular espaços longínquos, ou salas de perspectiva maneiristas e barrocas que utilizavam os truques do trompe l'oeil para quebrarem os limites dos planos das paredes e tecto em espaços tridimensionais ilusórios.

O que sentiram aqueles que pela primeira vez contemplaram uma pintura em perspectiva? Conta-se que no século XIX projecções fantasmagóricas com lanternas mágicas arrepiavam as plateias e é bem conhecida a história dos espectadores que fugiam ao ver a locomotiva a entrar na gare das primeiras projecções dos irmãos Lumiére. O ritmo acelerou-se, do cinema mudo passou-se ao cinema sonoro, daí à cor, à expansividade de formatos cada vez mais abrangentes. Começámos a ver televisão em imagens pouco nítidas a preto e branco que nos maravilharam como as silhuetas projectadas no escuro maravilharam os nossos avós. A revolução digital, os efeitos especiais, o 3D, a evolução tecnológica trouxeram-nos novos modos de ver, novas formas de conceber o realismo imaginário. Cada novo passo trouxe uma nova perspectiva. Imagens que há poucos anos nos pareciam nítidas e o cúmulo do realismo hoje parecem imperfeitas, rústicas, desfocadas, pixelizadas. Irremediavelmente datadas.

Kevin Kelly, como muitos espectadores, foi ver o Hobbit de Peter Jackson em 3D a 48 fotogramas por segundo (estereoscopia, que para mim 3D é outra coisa). Como muitos, saiu da experiência confuso, dorido e chocado. Para uma percepção visual habituada aos 24 fotogramas tradicionais a explosão perceptiva de um novo modo de ver é dura. Pessoalmente, quando vi o filme oscilei entre o deslumbramento pelas cenas panorâmicas, a completa confusão nas cenas de acção e o colocar a nu dos artifícios de 3D e caracterização pelo hiperrealismo da imagem. No artigo Pain of the New Kelly explica muito bem porquê, ao citar John Knoll (um dos criadores do Photoshop) que observa que a iluminação natural se ajusta bem ao 48fps mas que em estúdio a luz e a caracterização estão pensadas para a menor sensibilidade lumínica do filme tradicional. Tornar-se-á uma questão técnica. Faz recordar os primeiros filmes da história do cinema, pontos de vista fixos com actores que gesticulam exageradamente no palco do filme porque o filme era visto como um outro palco, ainda nos primórdios de uma estética que viria a evoluir com pressupostos próprios. Ou o exagerar de expressões faciais e maquilhagem para dar a expressão nos filmes mudos, onde o som não existia para conferir mais realismo.

Pessoalmente também sempre pensei que ainda não há uma estética do 3D estereoscópico em cinema, com os realizadores de hoje, criados na escola do 2D tradicional, a fazer pouco mais do que artifícios exibicionistas com a tecnologia.

Kelly, reflectindo que "in the end we tend to crave the realism -- when it has been mastered -- and will make our home in it" observa que o historial de adopção de novas tecnologias de percepção visual obedece a um padrão rígido. Primeiro reclamamos com a falta de realismo trazida pelo novo realismo, depois tornamos isso o novo padrão. Ou como Kelly coloca, primeiro dói, depois habituamo-nos e já não passamos sem ele, mesmo que em momentos de nostalgia gostemos de recordar o ruído do obturador da máquina fotográfica, o crack do vinil ou o ruído visual da película de filme. De preferência na televisão HD, no leitor de mp3 ou no smartphone que captura toneladas de pixels por fotograma.