segunda-feira, 15 de julho de 2013

Granta #117: Horror


Quando escritores ligados à literatura séria tentam a mão em literaturas de género muito pode correr mal. Sentindo-se talvez donos de uma verdade literária e mestres da palavra escrita, podem pegar nos elementos narrativos de literaturas de género que não levam muito a sério e remisturá-los. Tentando que dali saia uma história de terror ou ficção científica, normalmente ficam-se por resultados catastróficos. Ou então deixam-se ficar firmemente ancorados no seu género literário e fazem o que melhor sabem, tentando aproximar-se do cerne do género que foram convidados a homenagear. Daqui podem sair textos intimistas, com toques autobiográficos e reminiscentes de experiências de vida vistas sob outro prisma. Fica-se pelo talento narrativo do autor a diferença entre texto literário intrigante ou entediante.

Sendo a Granta uma revista literária conceituada este olhar para o horror revela um prazer culposo, um gosto mal assumido que não se enquadra no cânone da grande literatura e que se revela através de um olhar condescendente sobre o género. Isso explica as assimetrias desta edição, onde autores mais literatos exorcizam o monstro do género com histórias ambíguas que ambicionam ser textos importantes, logo longe do terror mas com um aceno para justificar a presença na antologia. Acabam por ser as obras mais fracas, a tentar dizer algo de pertinente ou importante enquanto fogem ao estigma da literatura de género. Os melhores contos são aqueles que se assumem ou como divertimentos à volta dos elementos do horror ou contos assumidos de terror. O destaque óbvio vai para The Dune por Stephen King, The Colonel's Son de Roberto Bolaño e The Infamous Bengal Ming de Rajesh Parameswaran. O realismo fantástico de The Starveling por Don DeLillo e a realidade crua de Deng's Dogs por Santiago Roncaglioglo são outros pontos altos da revista. De resto, apenas o talento literário de alguns autores sobressai na mediania de contos que revelam um olhar elitista para o terror, reinterpretando-o sob o ponto de vista dos sentimentos de perda pessoal.

False Blood: o horror escolhido por Will Self é uma meditação sobre o medo da doença condensado numa história intimista. Temendo, tal como muitos dos entes queridos que o rodeiam, o terror do cancro, o narrador de Self é apanhado por uma doença exótica que o obriga a ser clinicamente sangrado. Enquanto enfrenta a perspectiva de uma bizarra doença prolongada vai-se perdendo em reminiscências sobre um passado como viciado em heroína.

Your Birthday Has Come And Gone: O mote do conto de Paul Auster é uma longa reflexão sobre o falecimento de um ente querido, passando pela dormência dos primeiros tempos em que a incredulidade se parece sobrepor à realidade fria da morte, o extravasar de tristeza misturada com fúria e a reminiscência nostálgica sobre uma vida que se desvaneceu, misturando momentos de vida com a eterna questão: terá valido a pena viver? O horror aqui está no vazio da perda, no buraco latejante que nos fica na alma após o falecimento de um familiar próximo, uma dor particularmente aguda no caso de pai ou mãe. Auster deixou no papel o que sentiu ao perder a mãe, sentimentos ao mesmo tempo banais e eternos. Porque todos os sentimos. Para se compreender porque é que Auster contribui com um texto destes para uma antologia de horror literário (pronto, de elegante e erudito horror literário, afinal trata-se da Granta e há um certo prestígio a manter) é preciso ter-se suportado o rito de passagem que é o falecimento de um dos progenitores. Quem já passou por isso compreende o horror de Auster e arrepia-se com as suas próprias memórias, trazidas à tona pelas recordações do escritor.

Brass: O conto de Joy Williams distingue-se por ser incompreensível. Numa narrativa opaca e difusa eventualmente percebemos que se trata das preocupações de um homem, desempregado de longa data que vive com o filho e é sustentado pela mãe. A curiosidade da criança por questionar a realidade que a rodeia preocupa um homem afectado pelos seus falhanços pessoais. Na última página a autora revela-nos que a criança afinal se torna um daqueles miúdos que num dia risonho de sol vai para a escola de metralhadora em punho e começa aniquilar os coleguinhas da turma. Fica-se com a sensação que os últimos parágrafos foram escritos à pressa e colados à história para a autora se safar nesta antologia.

The Starveling: um estranho e encantador conto fantástico de Don DeLillo. Um homem solitário vive uma vida estranha, passando os dias de cinema em cinema a ver filmes, seduzido pela solidão da sala. Um dia cruza-se com uma mulher que parece partilhar o mesmo estilo de vida e segue-a pela cidade, de cinema em cinema, até um inexorável cruzamento numa casa de banho que o abala até à medula.

The Mission: neste conto de Tom Bamforth o horror é a realidade do Darfur, contada pelo olhar de um activista humanitário que atravessa o deserto marcado pela violenta guerra civil. Uma tenebrosa lembrança que os terrores reais infligidos pelo homem são sempre mais assustadores que os terrores ficcionais saídos da fértil imaginação humana.

Deng's Dogs: outra arrepiante recordação do que é o horror real, não o das casas assombradas e espíritos na noite mas o infligido em nome de dinheiro e ideologias. Santiago Roncagliolo leva-nos numa viagem pelo terror puro que se respirava no Peru nos tempos sangrentos da guerra entre a guerrilha maoista radical Sendero Luminoso e o governo peruano através dos olhos de um jornalista amordaçado por editores subservientes à presidência que conhece um lacónico mas firme padre italiano especializado em intervenção humanitária em zonas de conflito que ganhou o respeito das duas facções. Proveniente de uma classe média esclarecida e progressista, o jornalista mergulha estarrecido nos meandros de uma guerra suja de violência extrema parte a parte, onde a população camponesa é constantemente apanhada no fogo cruzado e com um sentimento generalizado de vingança sangrente prevalente nos governantes e seus agentes. O choque entre a credulidade na bondade e a crueldade humana está em evidência neste conto.

The Infamous Bengal Ming: há um fortíssimo humor macabro a envolver este divertido conto em que um tigre bem intencionado tenta comunicar os seus sentimentos e ajudar aqueles estranhos humanos que à sua volta tanto insistem em gritar e parecem sangrar com demasiada facilidade. Escrito do ponto de vista do tigre, é impossível não sorrir com a incompreensão do animal perante aquilo que é uma chacina sangrenta, em que um tratador é degolado pelas garras afiadas, uma mãe tem uma síncope cardíaca ao ver o seu bebé enfiado na bocarra do tigre onde morre sufocado (estava só a tentar protegê-lo, pensa comicamente o tigre). Termina em grande estilo, com o tigre esfomeado a abandonar as suas dúvidas sobre a ética de se empanturrar com carne humana de focinho enfiado nas tripas de uma espectadora habitual do jardim zoológico. Um conto muito divertido de Rajesh Parameswaran.

The Ground Floor: escrito por Daniel Alarcón, um estúdio de cinema decrépito e um filme sobre wrestlers de segunda ou terceira linha dão o mote a um daqueles contos que não se percebe o que é está a fazer numa antologia sobre horror. Talvez, rebuscando muito os argumentos, se esteja a referir ao terror dos eternos perdedores, que lutam e sacrificam tudo em busca de um elusivo lugar ao sol?

Insatiable: a partir de uma obscura referência literária onde Bram Stoker afirma ter-se inspirado em Walt Whitman quando criou Drácula, o monstro vampírico que suga a vida, Mark Doty lança-se numa reflexão tortuosa sobre a insaciabilidade dos desejos mais primevos, homossexualidade latente e assumida com fortes olhares ao contraste entre a vitalidade pura da poesia de Whitman e a sua antítese absoluta no personagem ficcional que sobrevive à custa de devorar a energia vital alheia.

The Colonel's Son: Roberto Bolaño consegue o impossível. Levemente, contado a história a partir de uma recordação difusa do narrador, mergulha-nos num intricado enredo de filme zombie de série b, em clara homenagem não só à obra de Romero mas a todos os outros filmes eminentemente esquecíveis que perduram na memória graças ao estranho encanto da conjugação de argumentos absurdos com maus actores e efeitos especiais ridículos. Bolaño conta uma história onde um jovem casal se depara com zombies militarizados e depois tem de sobreviver às habituais desventuras do género como um mau filme que numa noite de tédio solitário nos agarra ao ecrã sem que saibamos exactamente porquê. E sim, tem um final infeliz.

The Dune: Stephen King é um mestre do conto de terror, escrevendo com uma técnica narrativa eficaz que deixa o leitor preso às palavras e uma capacidade de nos levar em direcções narrativas que suspende sem pré-aviso, mergulhando-nos noutra vertente inesperada. No conto escolhido um juiz idoso navega até uma ilha que alberga uma misteriosa duna. Pensamos que algo de terrível lhe irá acontecer, mas não. King leva-nos antes a um encontro nocturno onde o juiz dita com urgência o seu testamento ao seu advogado. Para se justificar, conta a história da duna misteriosa, e revela-nos que periodicamente surgem escritos na areia nomes que correspondem a mortes inesperadas. Tudo leva a crer que a urgência do juiz idoso se deve a este ter visto um nome escrito na areia, mas com uma simples e magistral frase de remate final não é de quem esperamos. Num curto conto King urde uma teia intricada que nos surpreende a cada passo.

Diem Perdidi: o conto de Julie Otsuka vem encerrar em círculo a Granta, regressando ao tema do horror da perda motivada por questões de saúde que caracterizou os contos que abriram a colectânea. Desta vez é um memorial à senilidade, uma repetitiva lembrança da perda de memória narrada por uma filha que acompanha o desvenecer da mente da mãe.

Esta edição da Granta vale pelo prestígio da revista que se digna a um olhar momentâneo para um sub-género, sabendo que depois regressa ao patamar mais elevado de uma literatura erudita que não convive bem com quaisquer géneros que não lhe sigam a uniformidade de temas. Lê-se como referência e arquiva-se.