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terça-feira, 20 de agosto de 2013

Iliteracia Paisagista

Aparentemente, os inuits estão a construir nas zonas geladas do ártico marcadores geográficos para que os mais jovens não se percam nas vastidões geladas. Presos à tecnologia, são agora incapazes de ler o espaço que os rodeia. Essencialmente, sofrem de iliteracia paisagística, vitimizados pelas linhas coloridas e vozes melífulas dos engenhos de GPS que se sobrepuseram à capacidade de compreender o espaço real. É certo que esta ideia vem de uma design fiction, The Unstable Landscapes of GPS, que nos dá ideias tão curiosas como icebergs virtuais sobrepostos ao espaço real, libertados em direcção a plataformas petrolíferas oceânicas para atrapalhar trajectórias de super-petroleiros em vias marítimas automáticas. Mesh poligonal a colidir com navios massivos, paralisando-os graças à esquizofrenia dos instrumentos que vêem para lá do real. Claramente ficção, mas o conceito de jovens inuits adeptos da tecnologia incapazes de se mover no seu tradicional ambiente milenar sublinha um dos grandes riscos do admirável mundo novo digital: confiar funções cognitivas a dispositivos digitais.

O progresso técnico obriga a compromissos em que delegamos em sistemas tecnológico  funções outrora por nós desempenhadas. O regresso ao mundo natural é, felizmente, uma impossibilidade. Quantos de nós detêm ainda a capacidade de ir caçar, esventrar, tirar a pele e trazer para casa o jantar para cozinhar? E para quê, quando existem formas mais eficazes de garantir refeições? E é melhor nem começar a imaginar o que seria a saúde sem a tecnologia contemporânea. Delegar algo num sistema dá-nos liberdade para perseguir outros objectivos. Mas no que toca ao digital a tentação de confiar funções cognitivas nos sistemas traz um risco adicional. No caso do GPS, pode parecer muito prático deixar de prestar atenção a mapas e a confiar nos dispositivos para nos poupar à compreensão das confusas geografias dos locais estranhos, mas ao fazê-lo estamos literalmente a arquivar parte do nosso cérebro e a entregar formas de pensar a serviços e empresas. E a ficar deles dependentes. Sacrificamos pensamento e liberdade em nome da conveniência e baixo esforço mental. Ficamos prisioneiros de convenções digitais, das escolhas dos programadores e desenhadores de interface, e incapazes de reconhecer que ao fazê-lo sacrificamos algo de nós, um pouco de liberdade individual. Isto não é um resmungo anti-GPS, antes, é uma reflexão sobre a facilidade com que desistimos de pensar face ao deslumbre pelas funcionalidades do digital, esquecendo que estas têm influência nos nossos processos cognitivos e que vão influenciar a forma como pensamos e agimos. Não estou a advogar um regresso a uma espécie de pureza pré-digital, antes a pensar que temos de ser conscientes quando lidamos com algoritmos que são fundamentalmente úteis. Quando mediamos cegamente o nosso conhecimento do real através de filtros algorítmicos - percursos GPS, sugestões culturais, notícias personalizadas de acordo com perfis de interesse, amizades digitais homogéneas, estamos de facto a reduzir a nossa visão do mundo e a correr riscos de influência e manipulação sem que de tal nos apercebamos. Filtros e sistemas são úteis nas torrentes digitais de informação que nos levam de enxurrada a cada minuto, mas perder a consciência das suas limitações tendenciosas deixa-nos como os inuits do filme, incapazes de navegar na realidade palpável por esquecimento de capacidades elementares milenares.

Parte deste problema é educacional, o que me leva a este brilhante post sobre o mito da capacidade mágica das crianças de hoje em lidar com computadores. A noção dos nativos digitais que desenvolveram uma fluência inata porque crescerem com o computador é um dos pilares do deslumbramento tecnológico. Não é uma ideia de todo descabida - tem a ver com aquela noção McLuhanista dos media nos modificarem profundamente comportamentos, mas note-se que estar habituado ao computador não significa compreendê-lo. É um pouco como o automóvel. Muitos sabem conduzir, mas poucos percebem de mecânica e paralisam quando algo avaria (contra mim falo, sei, vá lá... mudar um pneu). Tive o azar de verificar isso in loco quando atribuí aos meus alunos adolescentes uma tarefa que julgava simples: descompactar o conteúdo de um ficheiro RAR necessário para efectuar um trabalho. A esmagadora maioria paralisou, incapaz de ultrapassar a dificuldade de abrir um ficheiro que, teimosamente, resistia aos cliques do rato. Eram crianças digitalmente sabidas, consumidoras exímias de música e vídeo online, partilhadoras compulsivas de iconografia do Tumblr, jardineiros cuidadosos dos seus perfis de rede social, que se revelaram incapazes de executar uma tarefa que exigia discernimento cognitivo que ia para lá dos caminhos pré-definidos pelas escolhas dos programadores e desenhadores de interface. Identifiquei-me claramente com o conteúdo do artigo, e sim, revi a rapidez de clique das crianças que não lêem a informação nas caixas de diálogo antes de clicar no ok (e depois queixam-se de infecções virais ou programas malévolos), ou alunos que incapazes de distinguir entre a forma-função de um computador portátil e um desktop ligavam o monitor e ao fim de algum tempo, em pânico, reclamavam que o computador não funcionava. Também me revi na interacção com perplexos utilizadores adultos incapazes de compreender as entranhas dos seus equipamentos. Confesso que a minha reposta favorita à reclamação "não há internet" é ok, vamos já ali ao mercado comprar um pacote de 250 gramas.

Brincadeiras e resmungos à parte, a questão é mais importante do que parece. As escolhas concebidas pelos responsáveis por sistemas informáticos para facilitar a vida aos utilizadores têm o efeito nefasto de lhes desligar o sentido crítico e a flexibilidade mental. Usar um computador, consumir informação, usar aplicações e websites não está no mesmo nível cognitivo de ter a flexibilidade para saber dar uso ao computador. Tal como aceitar cegamente a informação que nos transmitem não é o mesmo que ter um olhar crítico e questionar o mundo que nos rodeia. Num mundo digital pervasivo, a destreza no consumo de informação é uma capacidade menor, equivalente digital de saber manipular um telecomando. Saber escolher, saber intervir, e conhecer a máquina são as condições contemporâneas de manter a liberdade individual neste admirável mundo novo progressivamente digitalizado. Abdicar disto é ficar à mercê dos interesses corporativos, essencialmente cair numa variante futurista de servidão face a poderes instituídos. Fundamentalmente, educar para as tecnologias está a tornar-se cidadania elementar, num nível muito superior ao simples conhecimento dos princípios de utilização de aplicações específicas. Compreender o computador e como o podemos explorar para libertar a criatividade é o desafio educativo que se coloca a quem tem responsabilidades pedagógicas nesta área.

A questão das capacidades cognitivas e da perda de liberdade individual assente na compreensão defeituosa do ambiente que nos rodeia pela utilização de filtros conceptuais que se tornam invisíveis aos olhos de quem os utiliza assenta que nem uma luva neste ensaio de David Graeber: On Bullshit Jobs. O argumento principal é o da dissonância entre os sonhos libertários dos economistas dos anos 40, que imaginavam um futuro radioso em que a prosperidade e a tecnologia quase que anulariam a necessidade de trabalhar e o futuro actual onde os horários de trabalho se estendem,  interferindo na vida privada, e as profissões realmente produtivas ou significativas estão sob constante pressão enquanto se multiplicam profissões de cariz administrativo altamente lucrativas mas fundamentalmente improdutivas. Isto quando se tem emprego, claro. Na sua resposta ao como chegámos a este ponto Graeber faz intuir uma combinação letal entre interesses económicos que visam maximizar lucros a qualquer custo e forças sociais assustadas com as implicações para o status quo de uma hipotética sociedade onde o ser humano tivesse o tempo e lazer necessário para desenvolver os seus interesses pessoais. O autor até dá o exemplo dos anos 60 e dos hippies, eternamente ridicularizados pela cultura pop, como exemplo de algo que fez tremer o status.

A páginas tantas Graeber faz a afirmação mais acertada sobre as virtudes das leis do mercado que já li: "if 1% of the population controls most of the disposable wealth, what we call “the market” reflects what they think is useful or important, not anybody else.". Certeiro. A mão invisível do mercado é-nos vendida como uma teoria de justiça, onde pares utilizam as regras dos negócios para gerir as trocas económicas de forma eficiente. Na verdade, com o peso desproporcionado dos plutocratas, o fluxo funciona eficazmente apenas numa única direcção. E sim, a afirmação de que aquilo que as forças de mercado consideram pertinente ser o resultado directo dos interesses de uma reduzida elite é certeira e define na perfeição o porquê do assalto aos direitos sociais e serviços públicos a que assistimos - e sentimos na pele - na União Europeia.

Regressamos à questão inicial. Num mundo complexo, fragmentado, à mercê de forças aparentemente inexoráveis, a mente humana é o garante da tradição de liberdade individual e direitos sociais que herdámos do iluminismo e que gerou uma era história única de prosperidade e diminuição de desigualdades. Ideias que estão correntemente sob ataque cerrado de forças que visam meramente maximizar lucros a curto prazo, a qualquer custo. Num ambiente de complexidade crescente as capacidades cognitivas e críticas são o garante individual das liberdades. Cada vez que cedemos, que nos deixamos levar por mais um serviço digital deslumbrante que em nome da comodidade substitui algo que nos obrigava a dar voltas à cabeça ficamos um passo mais próximos da incapacidade de compreender e agir no mundo que nos rodeia. Tal como os inuits da ficção sobre GPS. A educação tem aqui um papel preponderante, e não surpreende que seja uma das áreas que está sob ataque mais cerrado pelos cães de fila dos plutocratas. O modelo iluminista de uma educação global, que dê a todos ferramentas básicas para a futura cidadania, é uma ameaça clara aos interesses que se reclamam herdeiros da tradição liberal mas que visam apenas reforçar os privilégios de uma elite global.

(Quanto à design fiction,  confesso que cada vez mais partilho da opinião do Bruce Sterling: é a mais interessante (e acutilante) FC contemporânea. Com a agravante de ser feita por tipos que se estão nas tintas para visões grandiosas do futuro humano; estão apenas a analisar e extrapolar os inesperados impactos culturais de tecnologias progressivamente pervasivas. Talvez esta linguagem vernacular se sobreponha às estruturas clássicas do género pelo efeito de estilhaçamento de estruturas narrativas que pulverizou a linearidade observado por Douglas Rushkoff no livro Present Shock. O ritmo rápido e intermitente, conceitos híbridos sintéticos, não linearidade e aura provocatória destes vídeos parece-nos mais adequado a extrapolar e reconceber futuros possíveis do que as estruturas narrativas clássicas da Ficção Científica. Curiosamente o melhor destas ficções é FC pura, infodumps conceptuais que não são atrapalhados por histórias clássicas de aventuras. O sonho está na pureza da ideia.)