segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Memória


Lauren Genefort (2008). Mémoria. St. Mammés: Editions Le Bélial.

Pensem depressa e digam que nomes vos vêem à cabeça quando falamos de ficção científica francesa. Precisamente. Esse. O incontornável Verne. E talvez os mais conhecedores se recordem de Robida ou J-H Rosny. E mais? Haverá? Será a FC em língua francesa um constructo centenário ou tem continuado viva e vibrante, com edições contínuas, prémios literários e um acervo de autores que exploram as diversas vertentes do género? Por cá a prevalência do inglês como segunda língua e do francês como distante terceira (e cada vez mais suplantada no sistema de ensino pelo espanhol) cega-nos neste aspecto. Note-se, no que respeita às questões linguísticas, que o corrente gosto pelo multiculuralismo na FC envolve a escrita ou a tradução para o inglês como língua franca que permite fazer chegar as ideias e palavras de autores não anglo-americanos ao sobrecarregado palco global, como se notam pelos esforços europeus da International Speculative Fiction ou da Haikasoru Press na FC nipónica. Habituados ao dilúvio editorial anglo-americano, quase que ignoramos a vibrante cena cultura de FC francófona. E, olhando para o exemplo de Laurent Genefort, é quase criminoso que ignoremos o seu espantoso e bem construído universo ficcional Vangk.

Do mesmo autor talvez a série Omale seja a melhor forma de conhecer a vastidão ficcional do universo Vangk, e espero lá chegar um dia. Talvez quando a livraria francesa da Alliance Francaise se dê ao trabalho de perceber que ter uma secção de ficção científica cheia de traduções francesas de Lovecraft, Dick e Asimov mas raros tomos de autores francófonos não tenha muita utilidade para divulgar a língua e cultura francesa. O universo de Genefort é sólido, palco vasto para muitas histórias com um sabor a Space Opera, e essa solidez nota-se na forma fluída com que nos transporta entre diferentes biomas alienígenas e terraformados, cada qual com a suas características próprias e culturas evoluídas ao longo de diversas décadas ou séculos de colonização. Este Memória intriga mais pelo que se vislumbra e imagina do que realmente nos é mostrado, que parece uma ínfima amostra das capacidades inventivas do escritor.

O universo Vangk desenrola-se num futuro milenar em que a humanidade se espalhou pela galáxia graças à descoberta das portas Vangk, artefactos de uma misteriosa civilização avançada que parece ter desaparecido por completo, deixando para trás uma rede de milhares de portas que possibilitam transpor as vastidões galácticas através de saltos no espaço-tempo. Passaram-se alguns milhares de anos desde a descoberta da primeira porta na órbita de Saturno e a humanidade colonizou os planetas habitáveis ou comercialmente valiosos que se encontram nas imediações das portas que vai encontrando. Com esta escala de tempo Genefort pode dar-se ao luxo de ser fortemente criativo, tornando a Terra-berço uma distante memória num universo vasto interligado pelas naves que atravessam as portas e uma rede que assegura o fluxo digital de comunicação entre colónias que assumem culturas diversas. É este o aspecto mais intrigante aflorado em Memória: a partir de elementos culturais comuns o escritor faz nascer em cada um dos seus mundos - planetas ou comunidades orbitais, culturas individuais fortes e distintas ao melhor estilo da space opera. A evolução social é influenciada pelas condições locais e isso dá liberdade para criar uma infinda variedade de culturas pelas quais somos levados pela mão do autor. É uma tela vasta, cheia de intrigantes e interessantes pormenores, um recreio de pensamento que extrapola reflexões sobre a forma como os carácteres culturais evoluem ao longo dos tempos. Desde planetas fechados com sociedades medievalistas de tecnologia avançada a zonas de tecnologia restrita pela comunidade galáctica, passando por culturas orbitais, núcleos especializados nas viagens entre portas, corporações industriais que controlam os recursos planetários das colónias sem se importarem muito com o destino dos colonos sob as formas de governo instituídas, o que nos é dado a conhecer é um universo ficcional sólido e completo.

Quanto ao romance em si, surpreende pelo seu carácter anónimo. Estamos habituados à aventura galáctica onde o indivíduo, o herói-personagem, tem o poder de ao longo do seu périplo modificar o curso da história, terminando num momento decisivo e conclusivo. Não é o que se passa neste livro, onde o personagem principal parece estar à deriva na multidão. Não é um ícone decisivo, antes é uma de entre as milhões de vidas anónimas na vastidão da galáxia colonizada. É certo que tem algumas características distintas que tornam a sua história digna de ser contada, mas ficamos com uma sensação generalizada de anonimato, de imersão numa vasta multidão, de abandono da ideia da capacidade individual para mudar o estado das coisas. Neste universo, as coisas são como são, e nenhum indivíduo tem poder para mudar o seu estado geral. Não há acções decisivas, apenas momentos retratados num fluxo narrativo que ultrapassa as páginas do livro. Esta quase impotência face ao peso do universo torna o carácter de Memória radicalmente diferente do habitual neste género literário. Talvez seja uma questão de sensibilidades culturais, de diferenças entre uma visão francófona ou anglo-americana do indivíduo face ao mundo que o rodeia. Mas esta é uma afirmação arriscada e que obriga à leitura de mais obras de FC francesa.

Passamos boa parte do livro sem saber o nome real do personagem principal. Notoriamente nem ele o sabe, ou dele se recorda. O que sabemos é que estamos perante um quase imortal assassino a soldo, que utiliza uma máquina única de tecnologia Vangk para transferir a sua consciência entre corpos humanos e assim literalmente encarnar aqueles que são da maior confiança dos seus alvos. Esta capacidade confere-lhe uma quase imortalidade, uma vez que pode sempre transferir a sua consciência para outro corpo, e um curioso carácter em que o corpo e a personalidade são como fatos utilizados de acordo com as ocasiões. Apesar de assassino, o herói é um criminoso ético, concordando apenas com missões de eliminação de indivíduos fortemente violentos e corruptos. O seu método é sempre similar, transferir a sua consciência entre os corpos daqueles que estão próximos dos seus alvos, devolvendo-os aos legítimos donos após o acto com convenientes amnésias.

No entanto, a constante transferência entre corpos está a abalar o cerne de uma personalidade cujas memórias começam a tornar-se pouco fiáveis. Após habitar uma infindade de vidas, começa a não conseguir distinguir entre as suas memórias e as alheias, e nota um padrão crescente de episódios em que sofre ataques causados pela emergência súbita de uma memória alheia. Suspeitando que se encontra próximo dos limites físicos das transferências de consciência, decide redimir-se dos seus crimes incorporando um ditador de pacotilha que se notabilizou pelos genocídios no seu cantinho do universo, num acto de vingança e castigo anónimo que apenas outro conhece. Sem querer desvendar demais este excelente livro, que nos agarra às páginas, digamos que somos levados em três missões de assassínio: a de um líder de um gangue criminoso que caiu nas más graças do consórcio que controla o planeta de origem, uma tentativa falhada de assassínio do líder político-religioso de uma sociedade de casta fortemente rígida e estratificada, e a missão final de redenção iniciada após conhecer profundamente a personalidade de um refugiado político cujo corpo foi útil para uma transferência entre planetas. Ao longo dos mergulhos nas memórias (e cada mergulho daria por si só um excelente conto ou livro) acaba por se recordar da sua origem como inteligência artificial consciente transposta para um corpo humano por cientistas militares que testam o recém descoberto artefacto Vangk e que no processo descobre uma oportunidade de se libertar dos grilhões laboratoriais e explorar o mundo exterior.

Confesso uma flagrante falta de conhecimento da ficção científica francófona, algo que espero colmatar nos próximos meses e no qual este Memória foi a primeira excelente surpresa. Há mais mundos fantásticos a descobrir para além da hegemonia anglo-americana e a longa história da FC em francês merece uma viagem de descoberta. Até porque... livros e editoras não faltam, a acessibilidade graças à amazon ou outras vias mais cinzentas é possível e ainda pertenço a uma geração que aprendeu francês como terceira língua, facilitando o acesso às obras sem o crivo das traduções.