terça-feira, 3 de setembro de 2013

Ten Billion Days and One Hundred Billion Nights


Ryu Mitsuse (2011). Ten Billion Days and One Hundred Billion Nights. São Francisco: Haikasoru Press

Este livro foi a minha introdução à FC japonesa e confesso que me está a ser difícil escrever sobre ele. Por onde começar? Não sabia o que esperar quando peguei no livro. Apenas sabia que ia muito mais longe do que a habitual metáfora de robots e cyberpunk que condiciona a nossa percepção da cultura popular japonesa graças à popularidade do manga. Depois de o ler percebi que este livro desafia classificações e ultrapassa fronteiras entre vertentes do género.

Não é uma leitura fácil, apesar da capacidade narrativa do autor ser capaz de conjurar imagens mentais de grande clareza. Surpreende pela sua não linearidade e intencional falta de um objectivo narrativo claro. Quando pensamos que temos o livro sob controlo, que o cérebro já deslindou o caminho das palavras, o autor troca-nos as voltas e muda os espaços e tempos. Há um eterno conflito, intemporal mas inconclusivo, que obriga as personagens a uma odisseia contínua sem fim à vista. Termina de uma forma inquietante e bela, deixando claro que é apenas uma pausa e não um término de uma longa história. Mas é um ponto final e não há qualquer continuidade para aliviar as questões do leitor.

A sensibilidade literária é muito diferente da que estamos habituados na FC de linhagem europeia ou americana. Não se sente aquela versão contemporânea do fardo do homem branco que vê na ciência e tecnologia a salvação da pureza humana nem a crença inabalável no poder do indivíduo
face aos destinos ou às forças conspiratórias. Sente-se antes uma fluidez de destino em fluxo e uma procura por visões estranhas que vão além daquilo que percepcionamos. O livro não é novo - a publicação original data dos anos 60, mas estes aspectos são um sopro de ar fresco para os leitores. É algo de diferente e inesperado.

Vamos então à história? Esperem o inesperado. Ryu Mitsuse inspira-se na antiguidade clássica e nos mitos sobre a Atlântida para este livro de nome tão comprido. Começamos com Platão, cuja viagem ao Egipto lhe ensina mais do que as lendas dos sacerdotes do faraó. Albergado numa casa onde rostos falantes surgem nas janelas cobertas de materiais transparentes e onde achaques de saúde depressa são curados com misteriosas substâncias, é-lhe confiada a história de um tempo antes do tempo, de uma cidade no meio do oceano onde reinava uma classe científica esclarecida que se aniquilou com a sua técnica após estranhas divergências que degeneraram em tumultos. Resta aos sobreviventes milenares espalharem pelo resto do mundo a civilização, semeando as bases do progresso científico, e resta a Platão meditar sobre o que vislumbrou

Deixamos Platão a matutar e somos levados à Índia, onde um jovem Siddharta decide abandonar o reino de que é herdeiro, mesmo que isso custe partir o coração do pai e da amada e abandonar o país a uma invasão do reino vizinho. Influenciado por quatro brâmanes, o jovem príncipe parte e retira-se do mundo. Nós não o acompanhamos. Estamos em Jerusalém, no ano de 33 depois de cristo, onde um Pôncio Pilatos farto das dificuldades de gerir um posto menor do império cede facilmente às exigências dos sacerdotes judaicos atemorizados pela palavra de um homem que prega uma vida melhor para lá dos limites da vida. E assim se processa a crucificação de Jesus, homem iluminado que Pilatos é incapaz de compreender. No momento da crucificação o céu escurece, luzes surgem e o corpo é resgatado para os céus.

Da antiguidade clássica vamos até ao futuro distante. Sob as ruínas de Tóquio o ainda jovem Siddharta encontra Orionae, um guardião milenar do segredo atlante que o aguardou através dos tempos. São atacados por um Jesus Cristo com implantes robóticos e Siddharta descobre que também é mais do que humano, o que ajuda a perceber como é que ultrapassou os milénios. Já Orionae é um andróide de longa duração. A discussão teológica ecuménica entre os fundadores do budismo e o do cristianismo processa-se com lasers de alta intensidade e mísseis teleguiados. Mas a luta é inconclusiva, e Siddharta acompanhado pelo andróide penetra num portal que o leva para além da Terra em busca dos segredos da Altântida. Noutro planeta, numa galáxia distante, a reposta a todas as questões parece estar encerrada numa cidade que se revela como o repositório da digitalização dos habitantes, adormecidos e imortalizados por medo a uma ameaça cataclísmica. Não é aí que se encontram as repostas que procuram.

Mas uma parte do segredo começa a deslindar-se. A vida na Terra foi - passe a expressão - uma experiência de terraformação levada a cabo por equipes de cientistas de uma civilização situada para lá das fronteiras do universo. A Atlântida era o seu centro de operações onde baseavam a sua tecnologia inimaginável que permitiu o desenvolvimento de vida no planeta. Até que chegaram ordens inexplicadas para terminar a experiência. Se uns obedecem, outros questionam e nos tumultos resultantes dá-se o cataclisma que inspirou as lendas. Resta a Siddharta e ao fiel Orionae, agora acompanhados por Asura, uma aparente divindade de grande poder e origem desconhecida, continuar a sua busca por Maitreya, entidade que vive para lá do universo e que detém a chave para compreender os mistérios da criação e destruição da vida na Terra. Prosseguem a busca, com um mortífero Jesus sempre à perna, pronto para os exterminar com pulsos de laser de plasma e ogivas de mísseis inteligentes.

A ideia de astronautas alienígenas que supostamente teriam influenciado a vida e a civilização na Terra primordial não é nova. Hoje ganhou nova energia, graças aos esforços de canais televisivos em busca de audiência. Este livro inspira-se claramente nesse ideário como fonte para especulação narrativa. A ideia de divindades que são humanos com potenciamentos tecnológicos é o fio condutor de Lord of Light. Na minha mente pergunto-me se as teorias aparvalhadas de Von Däniken e o livro inimitável de Zelazny foram factores de influência neste livro nipónico que lhes é contemporâneo. É uma ideia, mas não uma afirmação. O que se encontra sobre esta obra fica-se pela indicação de que se trata de um dos grandes clássicos da literatura de ficção científica japonesa.

Este é um livro frustrante, encantador, que baralha uma série de conceitos empolgantes mas desafia classificações e interpretações. No seu cerne é uma história um pouco doida sobre engenheiros alienígenas e divindades transformadas em armas. A forma poética como se desenvolve e os voos altos da imaginação do autor tornam-no muito mais do que uma simples história estranha. Após a leitura, o que fica é o gosto pelo conhecer uma outra tradição literária com visões diferentes do habitual sobre as temáticas do género e uma sensibilidade narrativa que aos calejados olhos ocidentais se sente como estranha.