quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Fórum Fantástico 2013: Sugestões de Leitura


O decano tio João Barreiros em modo enciclopédico com os atentos sobrinhos João Campos e eu. Foto, se bem me recordo, da Folha em Branco.

O João Campos, que faz um excelente trabalho de análise e divulgação de Ficção Científica no seu blog, já colocou online as sugestões de leitura deste ano no Fórum Fantástico. E na Trëma encontram vídeos das sessões. Fica aqui a versão longa das minhas escolhas. Para estas coisas prepara-se sempre o dobro do que realmente se fala. Isto vai com uns dias de atraso porque na semana passada fui vítima do excepcional apoio técnico da PT, cuja celeridade em resolver problemas de acesso à rede me desregulou todas as tarefas digitais. Enfim, resmungo feito, e adiante. Cá ficam as minhas sugestões de leitura e descoberta no domínio da FC e Fantástico.

Lauren Genefort (2008). Mémoria. St. Mammés: Editions Le Bélial.: Barreiros já falou tantas vezes de Genefort neste fórum que seria uma desconsideração não o descobrir. Depois de ler este Memória sinto que é quase criminoso que ignoremos o seu espantoso e bem construído universo ficcional Vangk. O universo de Genefort é sólido, palco vasto para muitas histórias com um sabor a Space Opera, e essa solidez nota-se na forma fluída com que nos transporta entre diferentes biomas alienígenas e terraformados, cada qual com a suas características próprias e culturas evoluídas ao longo de diversas décadas ou séculos de colonização. Este Memória intriga mais pelo que se vislumbra e imagina do que realmente nos é mostrado, que parece uma ínfima amostra das capacidades inventivas do escritor.

O universo Vangk desenrola-se num futuro milenar em que a humanidade se espalhou pela galáxia graças à descoberta das portas Vangk, artefactos de uma misteriosa civilização avançada que parece ter desaparecido por completo, deixando para trás uma rede de milhares de portas que possibilitam transpor as vastidões galácticas através de saltos no espaço-tempo. A humanidade colonizou os planetas habitáveis ou comercialmente valiosos que se encontram nas imediações das portas que vai encontrando. Com esta escala de tempo Genefort pode dar-se ao luxo de ser fortemente criativo, tornando a Terra-berço uma distante memória num universo vasto interligado pelas naves que atravessam as portas e uma rede que assegura o fluxo digital de comunicação entre colónias que assumem culturas diversas. É uma tela vasta, recreio de pensamento que extrapola reflexões sobre a forma como as culturas evoluem ao longo dos tempos dependendo de ideologias e condições locais.

Quanto ao romance em si, surpreende pelo seu carácter anónimo. Ficamos com uma sensação generalizada de anonimato, de imersão numa vasta multidão, de abandono da ideia da capacidade individual para mudar o estado das coisas. Neste universo, as coisas são como são, e nenhum indivíduo tem poder para mudar o seu estado geral. Não há acções decisivas, apenas momentos retratados num fluxo narrativo que ultrapassa as páginas do livro. Esta quase impotência face ao peso do universo torna o carácter de Memória radicalmente diferente do habitual neste género literário. Talvez seja uma questão de sensibilidades culturais, de diferenças entre uma visão francófona ou anglo-americana do indivíduo face ao mundo que o rodeia.

Para vos dar mais um cheirinho, o personagem é um assassino perfeito cuja mente viaja por entre corpos e descobre que o segredo da sua existência se baseia em experiências de inteligência artificial combinadas com um artefacto vangk.

Ryu Mitsuse (2011). Ten Billion Days and One Hundred Billion Nights. São Francisco: Haikasoru Press:
Olhando para outras paragons destaco o trabalho da Haikasoru Press, que está a traduzir metodicamente FC japonesa para os leitores ocidentais. Há um pouco de tudo, desde fc militarista a hard SF, hibridizações de fantasia e livro infantil. E há esta coisa estranha que desafia classificações e ultrapassa fronteiras entre vertentes do género. Surpreende pela sua não linearidade e intencional falta de um objectivo narrativo claro. Quando pensamos que temos o livro sob controlo, que o cérebro já deslindou o caminho das palavras, o autor troca-nos as voltas e muda os espaços e tempos. Há um eterno conflito, intemporal mas inconclusivo, que obriga as personagens a uma odisseia contínua sem fim à vista. Termina de uma forma inquietante e bela, deixando claro que é apenas uma pausa e não um término de uma longa história. Mas é um ponto final e não há qualquer continuidade para aliviar as questões do leitor.

Num resumo rápido ficamos a saber que a Atlântida foi uma base para astronautas extra-universo terraformarem a terra mas quando as chefias se cansam da experiência os funcionários mais dedicados revoltam e deu no que deu. A luta continua ao longo dos séculos. Os acólitos dos atlantes recrutam Platão e Siddharta para o seu lado enquanto as forças extra-universo que querem apagar o trabalho na terra escolhem Jesus como seu paladino. A coisa deslinda no futuro onde Jesus e Siddharta se guerreiam com lasers de alta intensidade e mísseis teleguiados, o que dá toda uma nova noção ao conceito de discussão teológica ecuménica.  Há aqui toques da mitografia atlante, das teorias giras mas aparvalhadas de Von Däniken e talvez Lord of Light de Zelazny. E uma dose saborosa de loucura.

Comics: é difícil escolher apenas três num ano cheio de séries e lançamentos interessantíssimos, particularmente de uma Image e Dark Horse decididas a apostar na FC. Mas cá vão:

Mister X Eviction:  Dificilmente haverá comic mais bem escrito e ilustrado a ser publicado actualmente. Dean Motter deslumbra pelos seus argumentos new weird, misturando borgesianismo com futurismo em histórias cheias de referências culturais, e por ilustrações fortemente estilizadas que remetem para o design utópico dos anos 40 e 50, estética art deco e estilismo aerodinâmico de Bel Geddes ou Raymond Loewy. Um mimo para os olhos e para a mente.

East of West: de Jonathan Hickman já temos o surreal Mannhatan Projects e agora este weird wild west que  mistura horror sobrenatural, ficção científica, história alternativa e western. Imaginem cowboys em distopias ucrónicas futuristas com os cavaleiros do apocalipse à mistura numa américa futurista onde as nações índias se unificaram e mantiveram a sua independência, o Texas é um estado livre, a Louisiana um reino e toda a costa oeste uma antiga colónia chinesa que proclamou a sua independência como república popular inspirada num Mao que morreu exilado nas costas americanas. Entre este East Of West, o igualmente bizarro e brilhante Manhattan Projects e o novíssimo God Is Dead, Jonathan Hickman ganha um lugar na categoria de argumentistas brilhantes de comics com este western tecno-futurista de realidades alternativas ucrónicas.

The Sandman: Overture: o muito aguardado regresso de Neil Gaiman e do seu Sandman à Vertigo é o inevitável elefante na sala. Para um confesso fanboy de Gaiman esta primeira edição é um deslumbre. O regresso ao estilo narrativo faz-se sem sentir que já se passaram dezoito anos desde que Gaiman colocou um ponto final através da morte e elegia ao seu personagem com um mergulho directo no arranque da série original mas beneficiando de um olhar retrospectivo que vai buscar inspiração, elementos e estilo narrativo aos momentos mais poéticos da série e não ao seu arranque mais A elegância literária é a que se espera de um autor como Gaiman e o seu condão de encantar com palavras. De regresso estão as deliciosas capas de Dave McKean, cujo estilo envelhece como um bom vinho do porto. Para os interiores temos o sempre deslumbrante J. H. Williams, cujo grafismo faz a ponte entre o estilismo dos comics e a plasticidade da pintura. O resultado final não é inovador ou surpreendente, sendo o que se esperava deste alinhamento de nomes. Previsível mas saboroso.


Outras leituras: Fumetti

Este ano tentei uma fuga ao panorama da BD anglo americana. Estamos tão habituados aos comics e bande dessiné franco-belga que nos escapam outras fortíssimas tradições editoriais. Há o manga, claro, mas para essa ainda não arranjei tempo e paciência. Tendo isto confessado tenho de olhar à volta, senão ainda sou chicoteado por bandos de Lolitas gótico-sailor moon. Por influência dos companheiros da liga de um jogo online (por puro acaso fui para a uma liga de gladiadores italianos) dediquei-me à descoberta do fumetti, que traz alguns riscos na pesquisa que normalmente revela obras que se podem caracterizar como narrativa erótico-infantil psicopatológica. Sou curiosamente puritano nas minhas leituras e esse lado lúrido não me atrai por aí além. O fumetti é respeitável como indústria de publicação e não se esgota em pornochachadas, reservando-nos belíssimas surpresas.

Greystorm foi uma delas. Fortemente inspirada em Júlio Verne, a série Greystorm recupera a iconografia futurista do final do século XIX revisitando a iconografia futurista de Robida. Quase me atreveria a inserir este fumetti na estética steampunk, uma vez que partilha dos seus elementos icónicos e narrativos, mas os autores demarcam-se do género em termos narrativos (particularmente o argumentista Antonio Serra) e sublinham Verne como grande fonte de inspiração, embora concedam similaridades estéticas. A premissa de um jovem inventor idealista que cada vez mais se alheia do mundo e resvala para as trevas e obsessão é desenvolvida com um fortíssimo sabor steampunk que se nota o trabalho de ilustração dos engenhos saídos do génio do personagem. A narrativa não é homogénea, oscilando entre momentos fortíssimos e momentos que se arrastam penosamente, mas no todo a construção é sólida e o mundo ficcional intrigante e bem conseguido. Circunscrita ao mercado italiano, esta série merecia uma maior projecção e divulgação.

Momentos essenciais da série: #01, Grandi Progetti, delírio juvenil de pura inspiração em Verne e Robida;  #07: Ossessione, assumida homenagem tenebrosa a Robur, O Conquistador; #10: La Battaglia Di Makatea, momento empolgante de batalhas entre soldados zombies retro-futuristas e indígenas de ilhas do pacífico; #03: Il Polo Sud, talvez o mais imaginativo dos álbuns da série, se bem que cheio de influências da ficção científica clássica sobre os mistérios das vastidões geladas e terras perdidas. Antigas civilizações subterrâneas, terras perdidas em oásis sob o gelo. Como não ficar encantado por esta série?

Dylan Dog: quando nos deparamos com as histórias de Tiziano Sclavi para o indagatore dell’incubo, o detective dos pesadelos, a paixão é inevitável. Assenta num delicioso sentido surreal, narrativas fluídas onde a sequencialidade linear é abandonada em prol de um esfumado onírico, fortíssima erudição no que toca a referências culturais que se traduz em centenas de detalhes que nos remetem para a tradição da pintura, do romance policial, das raízes do horror enquanto género literário, até do cinema. Dylan Dog como um herói impotente, que protagoniza estranhas aventuras reagindo como se levado pela maré. Ele é o centro de um vórtice de terrores e fantasias que quando se manifesta o arrastam em direcção a uma conclusão que surge naturalmente, num curioso contraste com personagens similares que usam os seus poderes para pôr fim aos mistérios das suas aventuras. Dylan não demonstra quaisquer poderes, não faz encantamentos arcaicos ou mostra inauditos poderes de deduçãom sendo narrador interveniente, cronista casual dos acontecimentos. Personagem de juventude suspensa, com tiques de teimosia e fobias, vórtice de horrores oníricos e eterno construtor de um modelo de veleiro que nunca termina, vive numa casa antiquada rodeado de livros e artefactos acompanhado por Groucho, sósia em tudo do homónimo irmão Marx e cujas piadas secas e acções ridículas servem de curioso comic relief à melancolia do detective do oculto. Como curiosidade, note-se que o próprio nome do personagem é uma elaborada homenagem literária: Dylan vem do gosto de Sclavi pelo poeta Dylan Thomas e Dog do título de um policial noir de Mickey Spillane.

Dos muitos livros destacaria a colectânea editada pelo jornal italiano La Repubblica, talvez o livro essencial para se ficar a conhecer Dylan Dog sem ter de mergulhar na extensa história editorial, coligindo  algumas das melhores histórias criadas por Tiziano Sclavi para este personagem: Attraverso lo specchio, homenagem subtil a Poe e Carrol, misturando os bailes com maus presságios de The Masque of the Red Death de Poe com espelhos misteriosos; Memorie dall'Invisible, policial noir de caça a um enigmático serial killer com momento notável de homenagem ao quadro Nighthawks de Edward Hopper que ganha nova vida no preto e branco absoluto do fumetti; L'orrore,  pergunta que suscita um divagar entrecortado por uma série de mortes violentas provocadas; Gnut, conto surreal onde a mistura onírica entre o real e o fantástico dissolve literalmente as fronteiras da percepção; La Bambina,perfeita pequena história de fantasmas, contada do ponto de vista da criatura que não e apercebe que é a assombração; e La piccola biblioteca di Babele, para mim a mais perfeita das histórias de Sclavi, pequena e bela homenagem a Jorge Luis Borges. Um bibliotecário monástico depara com uma praga de ratos que lhe devora as páginas dos livros nos quais está incumbido de escrever vidas e destinos. A sua solução é apagar o livro, apagando com isso as vidas e os locais nele contidos.

Sclavi é também o responsável por Dellamorte Dellamore, romance raro não traduzido do italiano que inspirou um dos mais belos e estranhos filmes de terror onírico italiano, o homónimo Dellamorte Dellamore. Realizado por Michele Soavi, discípulo de Mario Bava, distingue-se por uma estética que se afasta do giallo ou do spaghetti splatter que normalmente associamos ao cinema de terror italiano.

Outras sugestões: em comics, God is Dead do Hickman publicado na Avatar Press, onde os deuses regressam à terra para escravizar a humanidade. Aliás, qualquer coisa do argumentista, a viver um momento merecido na ribalta graças a Manhathan Projects, e a Infinity para a Marvel. Über de Kieron Gillen, mistura drástica de  super-heróis e história alternativa da II guerra também para a Avatar. Em fumetti o estranho pacifismo de Lilith de Luca Enoch, assassina que viaja no tempo para eliminar indícios de uma ameaça que levará a humanidade do futuro a uma vida subterrânea. Nos livros destaco a utopia arquitectónica ártica de Valtat em Aurorarama; o hipermodernismo disfarçado de technothriller de Daemon de Daniel Suarez; o urbanismo como personagem narrativa em Gun Machine de Warren Ellis.

Como pior do ano, destaco o arrasar de John Constantine pela DC, que cancelou o longo historial de Hellblazer e o reinventou dentro dos moldes infantis do mainstream; o falhanço de Vintage Tomorrows, onde dois fanboys tentam fazer um estudo semi-académico do steampunk mas ficam-se pela anedota superficial. Mas de tudo talvez o pior tenha sido a desastrada edição 247 da Interzone, uma catástrofe editorial que só lida para se perceber o desastre que foi.

Indo já alongada a conversa, graças ao saco cheio de livros que João Barreiros, como é tradição, traz para divulgar, deixei de fora duas leituras que ainda gostaria de destacar.

Neil Gaiman (2013). The Ocean At The End Of The Lane. Nova Iorque: William Morrow: Entre o hype mediático e a ansiedade dos fãs de Gaiman este era talvez um dos livros mais aguardados do momento. O autor não desilude, trazendo-nos um dos seus já habituais contos em que as barreiras do real são difusas e personagens em jornadas de auto-descoberta se cruzam com criaturas míticas, forças ocultas e segredos milenares. E gatos. Livro de Gaiman sem gatos não seria a mesma coisa.Este é um típico livro de Neil Gaiman, escritor formulaico cujas narrativas seguem sempre a mesma estrutura, apenas variando os adereços visuais das aventuras dos seus personagens. O que safa Gaiman é a sonoridade da sua prosa, que encanta, embala e deixa o leitor embrenhar-se na história.

Perry Rhodan: Imaginem aproveitar um tempo livre para relaxar na esplanada. Passam na banca de jornais mais próxima, compram o jornal e a edição mais recente da série de ficção científica favorita. Pois, por cá é sonho, mas na Alemanha é realidade graças à vasta série Perry Rhodan que já conta mais de quatro mil números iniciados nos anos 60, envolvendo diferentes séries, renovações e produtos transmedia de gaming e televisão. Parece-me pouco conhecida fora da Alemanha, apesar de se destacar a ferocidade dos fãs brasileiros que mantém viva uma comunidade dedicada à série.

Arranquei as leituras pelo princípio, Enterprise Stardust de Karl-Herbert Scheer (1969) que estabelece a premissa base do universo de Rhodan no que se tornará o primeiro ciclo. Só esta história dos ciclos daria pano para mangas. É a introdução ao heroísmo férreo de Rhodan, aos decadentes Arcónidas, ao genial Khrest e à dura e exótica Thora. Daqui parte uma longa série cheia de peripécias que gera um vastissimo universo ficcional cheio de estranhos alienígenas, terrestres imortais, mutantes e impérios galácticos. Só para dar uma ideia dos tortuosos avanços da história algures a meio a Terra é roubada do seu lugar e escondida noutro recando da galáxia. E isto nem sequer é o mais estranho da longa cronologia do universo Rhodan, servida em implacáveis doses regulares.

No arranque da sessão de escolhas literárias João Campos sugeriu que falássemos um pouco dos nomes da FC que este ano nos deixaram. Escolhi abordar Ray Harryhausen por sentir que tenho uma dívida para com ele. Da hecatombe neste ano no meio Fc&F destaco Ray Harryhausen, engenhoso criador de míticas criaturas e dinossauros que inspiraram Ray Bradbury pela influência que teve no meu trabalho . Coisa estranha para dizer, uma vez que sou professor, mas quando descobri as suas fabulosas criaturas animadas pensei logo que tinha de as levar para a sala de aula . Os alunos de hoje não se mostraram muito adeptos da estética de Harryhausen mas quando descobriram que podiam criar com meios rudimentares utilizando as técnicas desenvolvidas pelo autor mudaram de conversa. Iniciou-se aí um caminho pessoal de trabalho e investigação que bifurcou para o 3d e outras estéticas digitais aplicadas ao ensino na óptica do aluno como produtor de conteúdos. Saiu das criaturas de fábula de Harryhausen o ponto de inspiração inicial.