sexta-feira, 21 de março de 2014

Leituras


Chairman Bruce dixit. E tem tudo a ver com o próximo artigo que me despertou a curiosidade. Entretanto, a mais recente das suas já tradicionais e lendárias conferências de encerramento do SXSW, que medem tão bem o pulso ao mundo tecnológico e digital, pode ser ouvida no SoundCloud: Bruce Sterling Closing Remarks SXSW Interactive 2014.

Who Wants To Be A Cyborg?: Uma intrigante visita a um grupo de pessoas que não está para ficar sentada à espera que o progresso da ciência e tecnologia os leve aos futuros imaginados e se entretém a experimentar com a tecnologia e o seus corpos. Implantam ímanes e sensores no corpo, ampliam e descobrem novos sentidos de percepção através de usos intrigantes de tecnologias já existentes. Alguns colaboram com investigadores tradicionais, outros desenvolvem os seus projectos numa sub-cultura dedicada à transcendência da natureza humana, mesclando a carne com a tecnologia. É curioso que se apelidem de grinders, termo com que deparei há uns anos quando descobri o hipermoderno Doktor Sleepless do Warren Ellis. Há por aqui experiências fascinantes, como do pintor daltónico que com uma prótese tecnológica ouve as cores, ou do grinder que implantou ímanes nos ouvidos e ouve música graças a bobines indutoras que usa como colares, mas que já está a experimentar o ligar de contadores geiger e outros sensores sonoros que lhe dão uma perspectiva radicalmente diferente sobre o espaço real.

Elegy for a Contry's Seasons: Um poético ensaio que nos leva a enfrentar a dura realidade do aquecimento global através das pequenas mas marcantes alterações aos ciclos naturais. Toca em muitas vertentes, desde a descrição das modificações climatéricas nas estações com os invernos mais rigorosos e chuvosos, verões mais quentes e meias-estações quase desaparecidas, um espiralar cíclico que a cada ano nos traz uma nova alteração nos ritmos naturais; a cegueira auto-induzida dos responsáveis e negadores das alterações, centrada em visões de curto prazo e recusa em aceitar o que é para todos evidente; a dura realidade de países de terceiro mundo para os quais as catástrofes ambientais não são um argumento, são um facto que se repete a cada ano com maior intensidade; o sentimento de impotência perante a incapacidade de, enquanto sociedade e espécie, travar algo que a cada ano que passa cada vez mais se aproxima do irremediável. "Each country has its version of this local sadness", reflecte-se a meio do ensaio.

Reading to have read: Retirei algumas coisas deste artigo demolidor de Ian Bogost sobre mais uma app que promete facilitar a forma como lemos. Primeiro, do ridículo da app em sim, que transforma o acto de leitura diagonal numa corrida tecnologicamente assistida. Não temam mais, dizem-nos os seus criadores. Acabou-se o problema da falta de tempo para ler com esta app que permite que um livro como Guerra e Paz seja lindo num dia. O problema óbvio aqui é que ler não é apenas aglomerar letras em palavras, é compreender o que está escrito, seguir a linha de raciocínio dos parágrafos do texto, reflectir sobre o que lemos para o transformar em memórias e conhecimento. Não há aqui atalhos. Os nossos neurónios precisam de tempo para processar esta informação, e não há pílulas mágicas que façam desaparecer esta necessidade. O que o Bogost intui e afirma é que talvez ler, compreender e conhecer não seja hoje o objectivo. Num mundo digital caracterizado pelo excesso de informação, onde se produzem  e consomem por dia quantidades gargantuescas de palavras, o foco não está nos textos em si mas nos dados trazidos pelas suas partilhas. Ou seja, o que interessa é que um artigo seja publicado, partilhado, ganhe visibilidade, acumule cliques, e não que seja realmente lido: "In today’s attention economy, reading materials (we call it “content” now) have ceased to be created and disseminated for understanding. Instead, they exist first (and primarily) for mere encounter." Porque as stacks vivem disto, deste imparável fluxo de conteúdos interligado por minúsculas transacções publicitárias que se acumulam num bolo que vale biliões: "technology and media companies might want to compress more and more interactions with content (let’s not mistake them for reading) into a smaller and smaller amount of time. Think of it as an attentional version of data compression: the faster we can be force fed material, the larger volume of such matter we can attach to our user profiles and accounts as data to be stored, sold, and bartered." Nesta automatização progressiva quase que poderemos imaginar uma situação-limite, em que o elemento humano pode ser retirado desta complexa equação de bits, conteúdos e dinheiro sem que o sistema colapse. Bots a mastigar e trocar conteúdo para que bots o partilhem e bots registem o acumular financeiro do conteúdo produzido por bots para que bots registem o comportamento dos bots de partilha.

We Love Screens, not Glass: Uma intrigante reflexão sobre a nossa relação com superfícies capazes de exibir informação para visualização. Talvez os ecrãs, hoje objectos portáteis que cabem no bolso e que contam com uma ascendência genealógica que inclui os canhões de electrões televisivos, as telas de projecção cinematográfica, as telas de pintura, enfim, qualquer superfície impressa, respondam a alguma necessidade intrísecamente humana de tocar em algo de externo ao corpo, um refúgio de fisicalidade na abstracção digital.