quarta-feira, 26 de março de 2014

Likes e selfies? Pode ser a partir da uma e meia?

As limitações que foram impostas ao acesso à internet nas escolas pelo ministério são uma questão técnica, mas que começa a ser aproveitada para moralismos duvidosos e histerias. Já se desconfiava. Há quase um ano que sei que as actualizações do Windows estão bloqueadas até às 17:00 para aliviar o tráfego na rede. Agora ficámos todos a saber que foram aplicadas mais restrições no acesso a redes sociais e sites específicos. Facebook, Instagram, Tumblr e appstores foram apontados, quase demonizados, como zonas a restringir. E limites de tráfego são aplicados a outros serviços. A justificação é técnica mas depressa resvalou para um moralismo fácil que é do agrado dos media e trai o conservadorismo inato no carácter português.

Da minha experiência, sei que as coisas não são como estão a ser retratadas. Sem cair na ingenuidade de acreditar que não haja abusos pontuais e problemas concretos de indisciplina. No que toca às redes sociais, em particular o Facebook,  não são habitualmente usadas durante as aulas embora o possam ser como espaço de partilha de actividades. Há cada vez mais escolas, estruturas educativas e associações de pais que as utilizam para divulgar o que fazem. Pode-se questionar se um site dedicado à partilha social poder ser de utilidade pedagógica, mas não é assim tão difícil fazê-lo. Num caso muito específico, quando decorreu a semana Hour of Code, organizada em Portugal pela ANPRI, foi criada uma página no Facebook onde professores e alunos partilharam os registos das actividade desenvolvidas neste projecto internacional.  Se o Facebook está a ser utilizado durante uma aula, das duas uma: ou o é dentro de uma actividade prevista, incluindo aqui a ideia de usar o acesso como uma recompensa após conclusão de tarefas, ou então os alunos estão a fazê-lo às escondidas. E isso não é um problema técnico, é disciplinar, existiria sem a rede social, e não se resolve cortando acessos. Quem se distrai arranja sempre algo com que o fazer. No meu tempo e no meu caso era a desenhar naves espaciais e armas nos cadernos de Matemática. Mas é sempre cómodo vir apontar o dedo moralista e criticar o uso destes serviços como uma degenerescência dos bons costumes.

Bloquear o Facebook cria um problema inesperado. É possível que se tentem aceder a outros sites não bloqueados e não se consiga, porque usam o login através do Facebook e o tráfego para as credenciais não passa. Pode acontecer com recursos muito populares no meio educativo como o Prezi, o Slideshare ou o Academia. Um exemplo, muito específico: imaginemos que um docente de línguas, para estimular o gosto pela leitura, organiza um clube literário utilizando a rede social Goodreads, dedicada aos amantes da leitura, para partilhar críticas e estatística de leitura. Como esta utiliza o login do Facebook, está de facto de acesso bloqueado.

O YouTube é usado intensivamente por professores para mostrar conteúdos em vídeo aos alunos: mini-documentários, simulações, reconstituições históricas ou clips de cinema. Fico estupefacto quando o vejo equacionado como um site para desperdiçar tempo. Acreditem, há mais pelo YouTube do que música e vídeos de gatinhos de ar amoroso a sofrer tropelias. No meu caso, é habitual mostrar vfx breakdowns aos meus alunos para que fiquem a saber como se fazem os efeitos especiais nos filmes. Tal como o foi nas aulas de artes mostrar animação de qualidade em 3D ou noutras técnicas. Não está bloqueado mas sujeito a limitações de uso, que ainda não percebi que impacto terão. Mas já o senti, em Janeiro, quando duas turmas que tinha a trabalhar edição de vídeo viram o desenvolvimento dos trabalhos complicado pela lentidão de acesso ao site.

Chamar rede social ao Tumblr é incorrecto. É uma plataforma de blogging com elementos de rede social. Uma página criada no Tumblr é de acesso público, e o site tem um processo interno de edição e partilha de conteúdos similar ao das redes sociais. Mas, no essencial, é uma forma de publicar conteúdo na Internet. A criação de blogs é uma actividade pedagógica de valor comprovado. Raramente tenho tempo de a incentivar entre os meus alunos (3D e multimédia obrigam a curvas de aprendizagem que obrigam a escolhas difíceis. Mas não ponho de parte). O leque de utilizações pedagógicas de blogs é muito vasto, e o Tumblr é apenas uma de várias plataformas possíveis de criação de páginas de Internet.

O Instagram ganhou fama como local de partilha de milhentas fotos de comida e selfies com efeitos especiais e parece fácil descontá-lo como algo com potencial educacional. Mas notem: o que tornou o Instagram um caso de sucesso foi a possibilidade de com filtros simples fazer fotografias criativas. Não parece descabido dinamizar um concurso de fotografia digital para tirar partido dos filtros da aplicação, se bem que esta seja uma ideia muito pontual.

É problemático sentir que na mentalidade pública estes serviços digitais são rotulados como espaços de lazer, desperdícios de tempo útil e perversões à seriedade do trabalho escolar. A criatividade dos professores e alunos tem mostrado o oposto, que até os serviços supostamente mais inúteis podem ser utilizados como ferramenta ao serviço da aprendizagem. Considerá-los meros desperdícios é sinal de baixa compreensão do impacto e leque de possibilidades aberto pelo mundo digital. Algo que até se percebe, neste ritmo acelerado de inovação em que muitos não têm acesso ou tempo para digerir o cada vez mais vasto mundo digital. Os argumentos moralistas nestas coisas disfarçam a incompreensão.

Bloquear tráfego das lojas de aplicações android e iOS talvez seja um reconhecimento do sucesso da utilização da internet nas escolas. É um problema que se coloca para dispositivos móveis, que acedem através das redes wifi que cobrem as escolas e que talvez formem de facto a maioria dos dispositivos que utilizam a internet nas escolas. Os tablets e smartphones são pervasivos entre os alunos. Percebe-se que actualizações automatizadas saturem uma largura de banda que é partilhada por todos os estabelecimentos de ensino. Novamente, é uma questão técnica. Controlar temporariamente este tráfego para aguentar a qualidade do serviço não nos complica a vida, a menos que se planeie uma actividade que obrigue os alunos a irem às appstores buscar uma aplicação que necessitem. Como, por exemplo, o caso de um professor que se lembrou de experimentar realidade aumentada com modelos 3D criados pelos alunos e que mesmo sem bloqueios perdeu imenso tempo a ensinar a descarregar as apps correctas na floresta de variantes do android. Este ano ainda não me atrevi a repetir a experiência.

Já as restrições às actualizações do Windows preocupam-me muito. Aqui fala o meu lado de gestor de sistemas informáticos na escola. Saber que tenho cem computadores que, porque as aulas terminam pelas quatro horas e nas limpezas diárias são desligados, não estão com as actualizações de sistema e anti-vírus em dia não me deixa tranquilo. Saber que no tempo diário que tenho para tratar da gestão destes equipamentos não posso fazer esta vertente do meu trabalho também não me deixa tranquilo. Há formas de tornear este problema através de políticas de grupos e segurança que automatizem o encerrar dos computadores fora de horas, e estou a olhar com muita atenção para o WSUS, porque não me agrada nada que os equipamentos estejam ligados e a consumir electricidade após o fecho diário da escola só para que estejam actualizados. Esta não é uma questão menor. Computadores desactualizados representam um risco de segurança para a rede interna das escolas. Vírus a afectar pens e ficheiros são uma consequência menor de um problema que pode levar ao corromper de dados de backoffice.

Estas restrições não causam tanta mossa quanto isso. Acessos ao Facebook, Instagram e outros durante o tempo lectivo não são tão prevalentes quanto se pensa. Há mais coisas para fazer durante os intervalos do que aproveitar para ir ver as novidades dos amigos virtuais - como, por exemplo, tentar dar encaminhamento aos dilúvios de email, e quem os usa como recurso pedagógico encontra forma de tornear as restrições temporais sem sequer se dar ao trabalho de usar ferramentas para o fazer. Os logins suspensos em sites de terceiros são um pequeno incómodo, mas torneia-se. Restringir o streaming de vídeo no YouTube pode ser problemático. Pessoalmente, o que me preocupa mais é o bloqueio às actualizações do Windows. O resto são situações pontuais que não afectam em quase nada o dia a dia nas escolas. Sublinhe-se o quase, uma vez que esta situação pode estar em conflito com a abordagem ao programa da disciplina de TIC, como refere e muito bem a ANPRI.

O que é danoso é tentar utilizar esta questão técnica para tentar passar para o público que as escolas públicas são uma rebaldaria onde os professores, alunos e funcionários passam todo o tempo a fazer likes no facebook e a partilhar selfies no instagram em vez de se dedicarem ao trabalho duro e sério a que estão obrigados. Passa a ideia que nada é feito nas aulas porque crianças e adultos passam o tempo a brincar na internet. Ou então fica-se pelo classicismo conservador do argumento que a escola serve para aprender a ler, escrever e contar como deve de ser e laivos de tecnologia são um desvio a essa missão sagrada.

O tom das notícias não ajuda, com pérolas como esta a abrir a notícia no JN: "a limitação de acesso a redes sociais nas escolas poderá ser vantajoso uma vez que muitos alunos utilizavam o Facebook durante as aulas, gerando indisciplina na sala". Como disse? Faz parecer que não havia indisciplina antes do facebook. Ou da internet. E que esta é a causa das situações de indisciplina. Esta visão é ofensiva para a profissão, e prejudicial ao trabalho daqueles que procuram integrar a tecnologia na escola. Vem alimentar aqueles que, por se sentirem ultrapassados, não a compreenderem, ou serem simplesmente clueless, gostariam de banir as tecnologias digitais.