domingo, 20 de abril de 2014

Distribuição não-uniforme

(A reciclar textos)

“Utopia” é uma palavra carregada. Está sempre um pouco além do horizonte, a fazer-nos sonhar enquanto caminhamos, porque não queremos escapar ao impulso de construir um mundo melhor e o deixarmos como legado. Podem tentar-nos convencer do oposto, mas não há utopias prontas a consumir, devidamente embrulhadas a vácuo higienizado e prontas a aplicar. Há que as construir, sabendo que são por definição inacabáveis e que o paciente colocar de peças no lugar para criar o edifício perfeito nunca termina. O progresso humano é um fluxo permanente, hoje acelerado pelas ciência e tecnologia em alta rotação, conceitos sociais evoluem, modos de viver transformam-se. Nunca conseguiremos atingir utopias. Felizmente. Se chegássemos à perfeição estagnaríamos, e num mundo pluralista a perfeição de um não tem de ser o sonho do outro. Esta alucinação consensual que é a realidade degusta-se melhor na multiplicidade de visões. Já as utopias, se são inatingíveis como um fim, como processo motivam-nos a lutar por uma contemporaneidade mais justa e avançada.

Somos professores, talvez das profissões mais amargas neste momento de profunda distopia onde os valores iluministas e progressistas estão sob assalto cerrado de forças poderosas, novas variantes de antigos poderes que apreciam um mundo maleável aos seus desejos. Este é um momento em que conquistas que acreditávamos serem já elementares nos são retiradas em nome de uma ideologia de responsabilidade financeira que mal disfarça o revanchismo dos herdeiros das antigas oligarquias dominantes.
Somos professores e estamos na linha da frente do que é de facto uma guerra contra a construção de uma sociedade justa, igualitária e progressista. Tentamos mitigar as baixas que observamos nas crianças, vítimas de um empobrecimento advindo por escolhas políticas. Estamos sob constante ataque à dignidade profissional e laboral. E, de forma insidiosa, ao cerne do que realmente fazemos, com uma constante pressão normalizadora centrada num ensino nivelado pelo menor denominador comum onde só há espaço para a competência mensurável pela estatística, hoje arma afiada na guerra de ideias que sentimos estar a perder. Na tirania dos dados e do back to basics, dizem-nos, não há lugar para coisas acessórias como o sonhar ou culturas que extravasem os estreitos limites do basic. São obstáculos que prejudicam o que nos querem impor como uma bem oleada máquina de aprendizagem elementar. Vive-se um momento crítico. Velhas forças contra-atacam com uma ferocidade quase esquecida enquanto o progresso científico e tecnológico nos dão a possibilidade de um futuro melhor, vislumbrado pelos sonhadores da ficção científica mas hoje tornado possível e quase banal.

Temos responsabilidades acrescidas. Ao combate contra as velhas tiranias reformuladas com respeitabilidade metrificada temos de juntar algo que só faz sentido no dia a dia com os nossos alunos. O não baixar os braços, insistir que há mais mundo para além das visões redutoras dos programas ministeriais, que há espaço e necessidade para a cultura, ensinar-lhes que não têm de se resignar a viver numa sociedade estratificada de elites poderosas e um imenso lúmpen que lhes serve de massa para consumo ou força laboral precária. O futuro existe, mas não está uniformemente distribuído (e isso diz William Gibson, crédito a quem é devido), e temos um papel importante na possibilidade de melhor distribuição.

São estas vertentes que tornam momentos como este Utopias 2014 tão importantes. O seu carácter transdisciplinar, o assumir-se como espaço experimental de aprendizagem, a ênfase no diálogo e discussão de ideias, e, principalmente, a insistência na multiplicidade de expressões culturais e na sua importância para uma educação global. São aspectos que estão sob ameaça na escola esmagada pela pressão deste momento distópico contemporâneo mas que são elementares para a escola enquanto instituição formadora, transmissora dos valores das sociedades em que se insere. É por isto que é perigosa, é por isto que temos de a defender, e reflectir sobre a sua abrangência uma forma de atacar o peso da normalização estatística.