sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Ancillary Justice


Ann Leckie (2013). Ancillary Justice. Nova Iorque: Orbit.

Devo confessar que me custou a entrar neste livro. Ao princípio da leitura não conseguia perceber a razão de tanto prémio e elogio. O puzzle parecia difuso, a acção lenta e tortuosa, mais uma daquelas histórias de intriga palaciana entre entidades poderosas.

Apesar das reservas nesta fase haviam elementos capazes de intrigar. O facto da personagem principal ser uma inteligência artificial confinada a um ser humano, um ancillary, para todos efeitos um zombie, parte de cargas humanas descartáveis que servem apenas como agentes de inteligências artificiais que se distribuem para controlar naves espaciais. A qualidade do worldbuilding, gizada a grandes traços mas quando necessário cheia de pormenores que o tornam sólido. O progressismo transgénero a subverter o classicismo do herói masculino face ao vasto panorama galáctico através de uma fluidez linguística que torna indistinguível o género sexual das personagens. E o ser space opera, vertente da FC pela qual sou perdidinho de amores. A concepção de vastos panoramas galácticos pejados de espantosas naves e exóticas civilizações toca no cerne do deslumbre.

O momento wow aconteceu quando percebi que o ponto central da narrativa, a ideia-base a partir da qual tudo acontece, estava uma variante explosiva do conceito de inteligência artificial. No universo deste romance a galáxia divide-se entre um império humano expansionista e algumas outras civilizações que a autora nos faz sentir mais pela ausência do que pela presença. O insinuar e deixar no ar é um dos melhores convites à imaginação e Leckie não nos enche de informações sobre o que cria. Só o império é detalhado, como convém à linha narrativa. O militarismo imperial é assegurado por naves controladas por inteligências artificiais e famílias de clientelagem feudal. Outro dos aspectos interessantes do romance é o sublinhar dos limites de sustentabilidade de uma sociedade dependente da expansão constante. O poder supremo reside numa inteligência artificial que se distribui por inúmeros ancillaries, e é aí que este romance se torna profundamente intrigante. Por entre as constantes guerras e anexações vê-se forçada a atrocidades que geram dúvidas sobre o caminho que tem de trilhar. A sua consciência divide-se, embora não deixe de ser uma única entidade distribuída por inúmeros actores, e luta contra si própria com os recursos do império para moldar o destino deste. Em suma, trata-se de uma inteligência artificial bipolar em guerra consigo mesma.

É aqui que entra a personagem principal, outra inteligência artificial que se viu confinada a um único ancillary sobrevivente a uma das muitas manobras palacianas à escala imperial da IA dominante. Jura vingança, até porque é forçada a executar elementos da tripulação da sua nave pelos quais nutre um carinho especial. A noção de empatia artificial é aqui colocada como uma forma de suavizar a racionalidade binária, auxiliando o processo de tomada de decisões. A sobrevivência e vingança levam-na pelos recantos mais obscuros da galáxia em busca da única arma capaz de deter a IA dominante.

O clímax dá-se numa estação espacial imperial, ponto de reentrada da ancillary justiceira e do seu/sua companheira/o, um oficial imperial esquecido durante um milénio em hibernação que tem algumas dificuldades em conviver com o futuro onde desperta. As IAs confrontam-se, ameaçando arrastar o império para uma guerra civil. O final é inconclusivo, como é de esperar. Este é o primeiro livro de uma trilogia e pela vastidão da tela que Leckie gizou ainda haverá muito para desenvolver.

A space opera é um género de relativo simplismo. Naves, batalhas no espaço, civilizações exóticas, aventuras de toque militarista e é o que chega para muito do que se lê por aí. Este romance mostra-nos uma versão amadurecida, em linha com a complexidade de antecessores como Asimov, Banks, Simmons ou Delany, entre os praticantes do género que melhor o souberam desenvolver. Sem renegar a vastidão panorâmica, o deleite pelo exotismo e o imaginário tecno-futurista, este Ancillary Justice baseia-se em conceitos intrigantes como motor dos inevitáveis périplos por um bem elaborado mundo ficcional.