quarta-feira, 1 de outubro de 2014

The Wandering Earth


Liu Cixin (2012). The Wandering Earth. Beijing: Beijing Guomi Digital Technology Co..

Há qualquer coisa que me incomoda neste conto do escritor chinês Liu Cixin. Não é o conto em si, uma utopia negra de sobrevivência da humanidade face a ameaças cósmicas. É o tom, submissivo, de deferência perante a sabedoria dos líderes, de dissolução do indivíduo perante um ideal imposto por cima, o que me deixa inquieto na obra. E aquilo que não me surpreende. Estamos a falar de um escritor chinês, imerso numa cultura totalitária onde apesar da abertura económica o partido dita os comportamentos. Suspeito que esta ideia de abnegação individual face à imposição de um desafio comum patente no conto nos ensine mais sobre o poder da FC como sublimação do espírito contemporâneo do que sobre o vibrante campo da FC chinesa.

A história em si é interessante. Estamos num futuro deprimido, com a humanidade unida num governo global e a lutar contra a extinção certa. Cientistas detectaram que a temida expansão solar irá acontecer mais cedo do que o esperado e, para salvar o planeta da icineração na imensa onda de plasma que se estenderá para além da órbita marciana, o governo global decide soltar as amarras ao sistema solar e levar a humanidade para um novo abrigo em Proxima Centauri. Mas não serão utilizadas naves geracionais. Antes, é todo o planeta que será deslocado, graças a potentes motores ancorados nas placas tectónicas americana e asiática. As consquências são gravíssimas. A superfície oscila entre o escaldante e o gelado. A atmosfera congela e solidifica-se numa superfície devastada. Os oceanos gelam, os ritmos milenares de dia e noite terminam num último pôr-do-sol. Os humanos refugiam-se em cidades subterrâneas ameaçadas pelo magma tornado instável pelo oscilar do núcleo planetário. Mas a humanidade sobreviverá, a bordo de um planeta propulsionado pela combinação de mecânica orbital e motores iónicos que circunda várias vezes o sol, atravessa a órbita de júpiter e parte em direcção ao espaço interestelar. A Terra, vagueante, transformada em nave geracional albergando uma humanidade sobrevivente que se abrigará sob a luz de uma outra estrela.

Todo o tom da narrativa é de submissão. Apesar das autoridades manterem uma normalidade imposta através de regras restritas, os sofrimentos são muitos mas não afectam pessoas que deixaram para trás os sentimentos. A sobrevivência colectiva é o que interessa. Tudo o resto, paixões, desejos, tristezas, são desconsiderados como empecilhos. A vontade e sabedoria dos líderes é inquestionável, e os rigores a que a população mundial é sujeita são suportados com estoicismo e espírito de sacrifício. No final do conto tudo parece apontar para um erro. O sol não explode no momento previsto, a humanidade revolta-se, e após uma guerra fracticida apodera-se do centro de controle da nave planetária. Os responsáveis governamentais e científicos são executados pelos revoltosos, mas logo a seguir o sol explode e mostra-se que afinal as autoridades têm razão, sempre tiveram razão. A deferência à suposta sabedoria daqueles em posição de autoridade pervade todo o conto. É este o carácter que trai a sua origem. O espírito humano submisso à necessidade colectiva imposta pela autoridade esclarecida, misto de confucionismo com ideologia imposta pelas cúpulas de partidos únicos dá um tom muito intrigante a este conto vindo do vasto mas pouco traduzido manancial da FC chinesa.