quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Ficções


Lisboa no Ano 2000: Um dos textos elementares da ficção especulativa portuguesa. Escrito em 1906 pelo jornalista Melo de Matos nas páginas da revista Ilustração Portugueza. Um futuro especulativo, os primórdios do século XXI vistos pela lente do final do século XIX, ainda a apostar na perenidade dos sonhos colonialistas e no eterno sonho da afirmação de Portugal como um país de poder e referência, com Lisboa como nexo de impérios, linhas comerciais e vias de comunicação. Vale pelo que vale, como texto de referência, que nos faz sorrir com este século XX de telégrados e crinolinas, de comboios a vapor nos túneis sobre o Tejo e frotas de dirigíveis a aportar ao grande porto comercial lisboeta. Reeditado pelo Projecto Adamastor em formato digital, primeiro da sua colecção Génesis de clássicos da ficção especulativa portuguesa.

O Indescritível Senhor Salcedo: Começa incerto, entre o tom policial noir e a sátira a este mesmo estilo narrativo, mas depressa se torna numa eficaz história de horrores demoníacos. Um inspector endurecido por anos de investigação de crimes vê-se obrigado a recorrer aos serviços de um untuoso e arrepiante investigador do paranormal, para conseguir deslindar um caso de assassinio misterioso que está a alastrar para os colegas de trabalho. Todos os que tocaram no corpo de um homem morto em circunstâncias excessivamente estranhas acabam também por sofrer mortes horrendas, excepto o intrigado inspector que tem uma rara imunidade natural ao sobrenatural. Resta o indescritível Salcedo, conhecedor íntimos dos horrores que se ocultam nas fímbrias obscuras do real, para colocar um ponto final na mortífera história. Um curioso misto de policial noir com fantasia urbana e horror, agradável leitura na prosa leve e escorreita de Renato Carreira.

Aparição: Renato Carreira é o criador da genial (e infelizmente pouco divulgada) série Alpha 33, uma brilhante sátira ao estado novo que mistura elementos de James Bond com portugalidade em estado puro (e, ao contrário da divertida eterna promessa do Capitão Falcão, não é vaporware). A visão satírica, bem estruturada dentro do género fantástico, desta série levou-me a nomear um dos seus contos para Prémio Adamastor de Ficção Fantástica em Conto (e, estranhamente, acabou como parte da lista final de nomeados). Já este Aparição revela-nos um outro Renato Carreira, em sátira mais subtil. Quase nem se nota, mas quem conhecer quer a história do século XX quer os mitos marianos sabe que está lá. Imaginem-se em S. Petersburgo em 1917, com a revolução vermelha a triunfar, Lenin a discursar à multidão triunfante, e de repende... surge uma Virgem Maria nos céus, a convidar à conversão dos heréticos russos vermelhos. Só Estaline é capaz de salvar a revolução, sugerindo a Lenine que há métodos de fazer a populaça esquecer momentos incómodos para o novo regime e assegurar que a história é escrita com as palavras certas. Um conto interessante deste autor.