terça-feira, 30 de dezembro de 2014

1889: Journey to the Moon


George Wier, Billy Kring (2014). 1889: Journey to the Moon. Createspace.

Uma belíssima e inesperada surpresa, que não descobriria senão pela dica do João Barreiros. E ainda bem. Entre acumulações de leituras e afazeres é-me raro, hoje, ler livros quase de uma assentada, mas este obrigou-me a maratonas nocturnas. Comecei a lê-lo durante a noite da consoada, para combater aquele morno tédio entre o bacalhau e as couves, e fiquei depressa capturado por um livro aparentemente simples cuja toca em mais pontos do que à primeira vista faz notar.

1889: Journey to the Moon é uma frenética aventura steampunk sobre um inventor que constrói um dirigível capaz de chegar à lua, e que reúne como tripulantes personagens tão curiosos como Billy The Kid, a trisavó de Yuri Gagarin, Nikola Tesla a dar um toque electropunk, o trisneto do pirata Edward Teach, a seguir as pisadas familiares com uma frota de pirataria dos ares, um discreto mas eficaz Jack o Estripador e todo um restante grupo de ícones da ficção pulp. Temos o engenheiro genial capaz de construir todo o tipo de mecanismos, um matemático poliglota indiano, e até um índio com dotes culinários e de karateca que busca vingar-se de um general Custer que não foi abatido em Little Big Horn. A história é uma sucessão frenética de aventuras e combates. Os heróis têm de se bater incessamentemente contra o sétimo de cavalaria liderado por um Custer apostado em capturar a presidência americana aos comandos do dirigível espacial, piratas dos ares, as predações cirúrgicas do estripador, alienígenas numa base secreta na lua, e uma batalha espacial contra naves movidas por velas solares. Mal se respira, com tanto fragor e acção, num romance que termina com o despenhar de uma nave esboroada no oceano índico.

Kring e Wier fazem bom uso dos elementos da estética steampunk, mergulhando-nos numa visão alternativa de máquinas a vapor, dirigíveis que cruzam os céus, latão polido, robots retro e todo aquele ar neo-edwardiano que tanto encanta. Visto como mera aventura frenética de tom steam já torna este livro uma leitura muito divertida. Só que aventuras frenéticas a vapor é coisa que por aí abunda, e este livro tem muito mais para nos oferecer, dando-nos dimensões de leitura perceptíveis àqueles que forem conhecedores da evolução histórica da ficção científica. Apesar dos autores encerrarem um livro com um posfácio ao jeito de manifesto a rejeitar a ideia do steampunk como ficção científica, afirmando-o como um género por direito próprio que não teme elementos da fantasia, horror e FC.

O primeiro aspecto a intrigar neste livro é que a ciência bate certo. Há microgravidade, velocidades de escape, a lua é uma paisagem desolada sem atmosfera, cálculos orbitais. O elemento fantástico é a forma de propulsão capaz de levar a aeronave à lua, um elemento electro-mecânico denominado transmogrificador que tem a capacidade de anular a influência do campo gravitacional e com finos ajustes direccionar o flutuar da nave através do espaço. Elemento fantástico que nos remete para o outro aspecto notável deste livro: a forma como mostra conhecer a longa historiografia da FC.

Todo o tema da viagem à lua remete logo para Verne, como é óbvio, mas as referências não se ficam por aqui. Fiquei com a distinta impressão que os alienígenas humanóides com fatos algo insectóides refugiados em bases construídas em grutas no subsolo lunar remetem para o filme Le Voyage dans la Lune de Meliés. Já a ideia de uma substância ou elemento capaz de contrariar os efeitos da gravidade tem ascendente directo em The First Men of the Moon de H.G. Wells, com a viagem do distinto professor Cavour num engenho propulsionado por cavourite, também a cruzar-se com habitantes das crateras lunares.

O conceito de um inventor, criador de tecnologias avançadas que reúne um grupo de aventureiros e parte à aventura para paragens exóticas, desconhecidas ou extra-planetárias remete para as edisonades. Este género dos primórdios da FC baseava-se nos feitos fantásticos de inventores modelados em Edison, capazes de, entre outras aventuras, levar frotas de dirigíveis a Marte para retaliar e submeter os marcianos ao jugo terrestre, e caracterizava parte da literatura fantástica popular da viragem do século. Outro género em voga à época, e também de génese da FC, é a guerra futura, visões de combate com armas futuristas, algo que este livro nos dá amplamente, desde scooters a vapor armadas com arpões, dirigíveis de combate, carros blindados, espingardas de ar comprimido, robots e até lasers no espaço. É uma vénia, suspeito, dos autores, aos géneros que formaram a FC e que estavam mais pujantes na época que o steampunk tanto gosta de reinventar. Também não fica esquecido o género wild wild west, apesar daqui a inspiração partir mais da série televisiva e do filme do que dos mais clássicos steam men of the prairie, também contemporâneos do final do século XIX.

Uma leitura frenética, empolgante, bem escrita. Destaca-se pela luxuriante iconografia steam e rigor nos elementos mais próximos da FC. Torna-se notável por espelhar de forma muito elegante elementos dos primórdios da história da ficção científica, conseguindo torná-los apreciáveis sem se tornar romance referencial. Foi uma excelente surpresa para encerrar um ano de boas leituras.