sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Hieroglyph


Ed Finn, Kathryn Cramer (2014). Hieroglyph: Stories & Visions for a Better Future. Nova Iorque: William Morrow.

Será necessária uma nova ficção científica positivista e interventiva, para contrabalançar o sucesso das distopias e relançar a faísca do futuro como algo de luminoso a almejar, possibilitado pelo espírito científico? É esta a ideia subjacente ao projecto Hieroglyph, lançado há cerca de um ano por Neal Stephenson e que começou por ser uma plataforma que reuniu cientistas e escritores, provocando discussões e analisando a plausibilidade das visões futuristas. Confesso que é uma ideia que partilho, com reservas. A vertente de intervenção programática pode parecer problemática, mas insere-se numa tradição da FC clássica de olhar para o futuro não como oráculo mas como extrapolador de tendências, sabendo que esse acto não é inocente e influenciará os públicos.

É uma ideia que partilho, com algumas reservas. Ficção científica, creio,  é antes de mais ficção e deve ser vista à luz da sua qualidade literária. Ser interventiva e panfletária não a torna por isso diga de nota. E se pode e deve ser interventiva, que o seja com ideias frescas, sem repescar nostalgias de uma era dourada, encarando de frente os desafios da modernidade. São dois aspectos em que a antologia Hieroglyph, produto das discussões contínuas na plataforma, se revela pertinente. Os contos misturam autores bem conhecidos e estabelecidos com nomes em ascensão. A qualidade literária é cuidada, e o ideário firmemente dentro das balizas da modernidade tecnológica. Intrigante, luminosa, positivista, a olhar para a tecnologia como forma de capacitar a humanidade a enfrentar desafios e a prosperar. Mas há algo que me incomoda em toda esta luminosidade.

A primeira observação que li à antologia foi a de Damien Walter, que se confessou abismado com o deslumbre com a visão de empreendedorismo solucionista/tecnológico típico de Silicon Valley que caracteriza o lado mais lucrativo da tecnologia enquanto objecto de consumo, uma visão implementada de forma acrítica que desvia o olhar das desigualdades que gera e problemáticas sociais e ambientais que levanta. Walter é incisivo, acusando o projecto de ser deliberadamente ingénuo, repetindo os mitos neo-liberais com uma roupagem de futurismo tecnicista. Não consigo deixar de concordar com esta observação. Talvez eu, habitante de um país austerizado e a saque, numa europa aprisionada pelo credo neoliberalista, esteja a ver demais, em reacção alérgica a uma ficção que me atrai mas nalguns aspectos parece apresentar de forma radiosa uma forma de agir no mundo cujos profundos estragos que faz observo no meu dia a dia. Afastando os extremos, é perceptível que boa parte da antologia vive desse futurismo ingénuo, da ideia de carismáticos empreendedores esclarecidos cuja visão é infalível e trará um progresso incomensurável à humanidade.

Para crédito dos editores, sente-se que se aperceberam dessa vertente e souberam misturar pontos de vista. Se parte das visões se alicerça neste caudilhismo tecnocrático, também temos visões que se inspiram na colaboração entre redes, que olham para um terceiro mundo assolado pelos problemas trazidos pelas alterações climáticas, que questionam a ética da utilização de tecnologias em engenharia social, ou satirizam a competição implacável motivada pelo lucro financeiro e o consumismo tecnológico.

E consegue este Hieroglyph cumprir o que propõe? A ver vamos. Não se pode medir as consequências de um movimento a partir do seu primeiro manifesto. Aliás, coisa que não falta por aí são manifestos saídos de movimentos fugazes e depressa esquecidos. Boa parte dos escritores participantes já se distinguem pelo seu lado activista na defesa da visão humanista de raíz iluminista do papel da ciência e tecnologia na sociedade, casos de Stephenson, Brin ou Benford. Ou cujo activismo que confunde com a sua ficção, como já é habitual em Doctorow ou Sterling. Também nos traz vozes novas que se estão a distinguir quer na hard SF quer no articulismo futurista da blogoesfera global, caso de Anders, Schroeder, Bear e Newitz. Outros vão-se colocando em vários espectros, levantando muitas vezes as questões mais pertinentes, uma vez que os de sempre dão-nos aquilo a que sempre nos habituaram. Como é natural, sublinho. Há até espaço para um corpo estranho, mais no campo do transreal do que na FC especulativa bem informada.

O que é inegável é que Hieroglyph provoca. Há um toque de nostalgia da velha FC tecnocrática, sublimado pelo mergulho na modernidade. A especulação é bem informada e de elevadíssimo nível, alimentada por discussões com cientistas na vanguarda da investigação. A qualidade literária, como é expectável numa antologia que reúne tantos nomes sonantes, é elevada. Resta saber se terá o impacto que os autores desejam, mas algo é inegável: trata-se de uma antologia que dá gosto ler, que provoca a mente, estimula ideias, intriga e leva-nos a reflectir sobre os impactos tecnológicos, problemáticas contemporâneas e possibilidades de futuro. O estímulo é do melhor que podemos ter na ficção especulativa.

Atmosphaera Incognita: Neal Stephenson, mentor primário quer deste movimento quer da antologia, arranca com um conto tão optimista que quase nos cega com tanto brilho. A temática centra-se no etéreo conceito de elevadores espaciais e a história gira à volta da construção do primeiro elevador em direcção ao espaço, levada a cabo por um empreendedor visionário que no processo revoluciona indústrias, ultrapassa os limites da engenharia e ciência de materiais, e toma decisões cujo impacto só fará sentido anos ou décadas depois. O conto é intrigante, mas sofre da praga do caudilhismo empreendedorista. Nada se passa, tudo é imutável, até surgir um visionário que não tem medo de espalhar os seus milhões e é graças a ele que a humanidade dá um novo passo em direcção às estrelas. Das suas sábias decisões depende o catalisar de novas indústrias e novos mercados. Ou seja, Stephenson quis ser tão optimista que caiu na armadilha de se centrar na visão do líder de ruptura. Não deixa de ser verdade que empreendedores carismáticos conseguem inovar e criar aplicações tecnológicas que mudam o mundo (veja-se o caso de Steve Jobs e da apple) mas, por outro lado, os melhores destes apenas se distinguem pela visão de criar novos produtos a partir de tecnologias existentes mas não estão a criar nada de fundamentalmente novo (veja-se, novamente, o caso de Steve Jobs e da apple). E Stephenson quer apontar para um nível mais elementar. Sim, concordo, precisamos de novas ideias e de um novo optimismo tecnológico. Mas fazê-las depender dos caprichos de uma oligarquia rarefeita não é nada boa ideia. Até porque, no mundo dos hiperbilionários, quandos Elon Musks ou Sergy Brins andam por aí a investir a médio prazo em riscos tecnológicos? Pois, sim, esses mesmos. Tudo o resto anda mais ocupado de yate em yate nos intervalos entre engenharias financeiras. Não é que a história em si seja má. Toca num conjunto de possibilidades tecnológicas plausíveis, é entusiasta e, ao contrário do comum na obra de Stephenson, é conciso e não se estende, empolado, ao longo de centenas de páginas.

Girl in Wave : Wave in Girl: A contribuição de Kathleen Goonan tocou-me especialmente por ser uma história sobre um futuro utópico na educação. Esta não é uma área muito tocada pelos praticantes de FC, talvez porque aquela ideia da imutabilidade dos processos educativos tão bem explicitados por Seymour Papert na sua fábula sobre um cirurgião e um professor do século XIX transplantados para o século XX. Qual deles se sentiria à vontade no seu local de trabaho? O cirurgião teria muitas dificuldades em perceber uma sala de cirurgia contemporânea, enquanto que ao professor seria apenas preciso arregaçar as mangas. Papert criou esta fábula ao falar da importância e necessidade de incorporar a tecnologia na escola, mas a ideia da imutabilidade dos ambientes educacionais fixou-se. A coisa não é assim tão linear. É tão indesejável uma sala de aula decalcada da prelecção novecentista quanto uma sala cheia de gadgets ultra-modernos. Há que haver tempos para explorar, ouvir e criar. Mas estou a divergir. Noonan pega nalgumas críticas clássicas aos sistemas educativos, como a inflexibilidade dos tempos de aula herdada da era industrial, ou a compartimentalização de conhecimento, e adiciona-lhe a arrepiante tendência contemporânea de monetizar os sistema educativos, centrado em currículos examinados até à exaustão, explorado por empresas detentoras de mercados cativos na área dos manuais escolares e auxiliares de estudo, que cada vez vêem o mercado digital como muito apetecível. Goonan dá a volta a tudo isto com uma versão científica da pílula de conhecimento do Professor Pardal (não resisti à piada fácil): um tratamento nano-neurobiológico que permite a crianças com dislexia e outras dificuldades de aprendizagem refazerem as conexões neuronais e potenciar a plasticididade cerebral. As consequências são profundamente trasnformativas. Começa com crianças problemáticas mas depressa se estende a toda uma socidade ansiosa por  aprender mais e melhor. Há a oposição esperada de grupos religiosos, sectores conservadores e instituições, que se sentem institivamente ameaçados. Num mundo onde todos sabem ler e procuram o acesso ao conhecimento, já não funciona o impôr ideologias ou distorçer visões do real como forma de controlo económico ou social. Vemos estes acontecimentos com o olhar de um futuro risonho que aprende como foram as agruras do passado de onde surgiu. E nisto Goonan é simplista mas certeira: ler capacita o indivíduo, torna-o capaz de pensar por si e fazer livremente as suas escolhas. Como coloca no seu conto, a iliteracia é uma doença a ser combatida por meios científicos, tal como as pragas que as reformas progressistas na saúde pública iniciadas no século XIX erradicaram através da vacinação.

By the Time We Get to Arizon: É difícil de ver neste conto de Madeleine Ashby algum optimismo futurista nesta sátira negra ao racismo, políticas de imigração e sociedade panopticon passada numa cidade fronteiriça clinicamente estéril patrocinada por corporações. Um casal de emigrantes mexicanos tem de aprender a sobreviver no novo normal onde qualquer objecto faz parte de um sistema de vigilância e qualquer acção conta como ponto ou demérito numa apropriação da mecânica das redes sociais como sistema de acesso a vistos de imigração. Uma visão arrepiante, porque altamente plausível, das barreiras à empatia alicerçadas em sistemas digitais e procedimentos administrativos. É-nos sempre confortável o negar aquele sentimento que as nossas acções prejudicam por detrás do estou a cumprir ordens ou seguimos os procedimentos ou o moderno de acordo com o sistema informático... Este gradual sentimento de perda de humanidade mescla-se com intrigantes visões de uma realidade mantida limpa e sanitizada através de estratégias corporate e uso invasivo de sensores tornados possíveis pela internet of things. É um novo 1984, com o pesadelo orwelliano transformado em sonho neoliberal pela aparência de prosperidade material que oculta uma necessária rendição do espírito livre humano a consensualidades limitativas. Talvez o optimismo futurista, de que a antologia é arauto, se encontre na preservação do poder antever cenários negativos e tentar evitar que se tornem realidade.

The Man Who Sold The Moon: O lado activista de Cory Doctorow é cada vez mais inseparável do de escritor. As suas ficções são interventivas e projectam em futuros próximos especulações informadas sobre questões de propriedade intelectual, predação neoliberal, capitalismo terminal e hacker culture. Este conto, quase uma novela, toca muito bem nesse pulso de futurismo catastrofista utópico com uma história sobre hackers cujo amor por desafios os torna idealistas por acaso. Tudo começa com uma amizade inesperada e um projecto insano de criar uma impressora 3D nómada que imprima blocos assembláveis como abrigos a partir da areia dos desertos. Ideia para o Burning Man, acaba por evoluir para um projecto iterativo que irá colocar impressoras 3D a vaguear pela superfície lunar imprimindo tijolos a partir do regolito para utilização por possíveis futuros colonos lunares. A ideia de periclitantes impressoras 3D  a vaguear é algo de fascinante. Doctorow tempera um intenso pessimismo social com algum optimismo da hacker culture. Espelhando bem o momento contemporâneo, projecta o capitalismo rapace terminal e o avanço do precariado num futuro socialmente decadente. A esperança possível encontra-se na hacker culture, naqueles que adoram abrir para ver por dentro, reconstruir, inovar, e que o fazem apesar do colapso sistémico provocado pelo capitalismo terminal.

Johnny Appledrone Vs. The FAA: A vida por entre as gaiolas douradas das paisagens mediáticas higienizadas para bem de todos.  Isto é FC da era pós-Snowden e Assange, com a erosão da confiança nas instituições governamentais, a consciência da instrumentalização do poder político a interesses corporativos, e o colaboracionismo alegre das entidades empresariais que controlam o acesso à web e os conteúdos publicados. Ostensivamente a história é um devaneio especulativo de futurismo de curto prazo, com hactivistas, drones e agências governamentais em conflito pelo controle do espaço mental de cidadania. Mas vai mais longe, e certeiro na sensação que já hoje temos que as ideias que circulam são facilmente estranguláveis ao circular em meios de comunicação com linhas editoriais enviesadas e por uma internet tida como libertária mas de facto controlada em nós centrais específicos. Um voo brilhante de Lee Konstantinou, com apps solucionistas que controlam o comportamento dos utilizadores, a desolação do desemprego estrutural num futuro hiper-neoliberal onde a automação substitui tudo o que é mão de obra humana, e um clima positivista mediático que cerceia a liberdade com apelos à responsabilidade e esmagamento de ideias consideradas danosas pelo establishment. Mas hey, não é este o mundo em que vivemos agora?

Degrees of Freedom: O conto de Karl Schroeder distingue-se pelo positivismo absoluto que revela. O conceito é interessante. Os avanços internet of things saturaram o ambiente de sensores, e o poder computacional em crescimento constante permite soluções em tempo real de inteligência artificial acoplada a big data com realidade aumentada. Schroeder leva o conceito mais longe, com ideias vindas das neurociências cognitivas,  mineração de bases de dados e sistemas de decisão em tempo real que fazem uso das inteligências racional e emocional. A ideia subjacente é a de um governo 2.0, alicerçado em redes descentralizadas e algoritmos criptográficos, capaz de cumprir a real promessa histórica da democracia no combate à desigualdade, colocando nas mãos de todos ferramentas decisórias que ultrapassam e melhoram as instituições clássica, presas a grupos de interesse. Como disse, é um conto positivista. As mesmíssimas ideias podem ser usadas para exercer um controle ubíquo e pervasivo sobre as populações numa dimensão que os piores totalitarismos do século XX não ousavam sequer sonhar. Como diria Morozov, este conto é um sonho húmido de solucionismo algorítmico.

Two Scenarios for the Furture of Solar Energy: Annalee Newitz, articulista do iO9, lega-nos duas visões ensaísticas sobre futuros prováveis. Num, os sensores e tecnologias digitais imperam, numa espécie de cardboard future de ficções de design. Noutro a tónica está nas biociências, numa visão orgânica radicalmente diferente da estética limpa do design digital. Numa temos a superfície polida dos artefactos tecnológicos, noutra a intrusão do biológico num dia a dia cheio de fungos e relva personalizada. Ambas espelham uma concepção do urbanismo futuro que relega para a memória histórica o conceito contemporâneo de cidades pensadas em função do automóvel. Dose forte de especulação informada.

A Hotel in Antarctica: O conto de Geoffrey Landis sofre de empreendedorismo alastrante. O conceito é inteligente e a ciência sólida, ao analisar a construção de um hotel no continente antártico que dê resposta ao interesse turístico, desenvolva técnicas de sobrevivência confortável num local inóspito que possam servir posteriormente para a exploração espacial, e desperta as consciências para a problemática do aquecimento global. Intrigante e bem montado, mas a fazer tudo depender dos impulsos de empreendedores e dos desejos voláteis de bilionários. Claramente infectado com um dos mais pervasivos mitos neo-liberais, o da superioridade do empreendedor capaz de mover montanhas sobre o esforço sustentado de organizações, mito que esquece que as tecnologias que tornaram alguns empreendedores famosos pelas inovações que trouxeram aos mercados foram consequência de processos de investigação sustentada durande décadas por parte das instituições académicas e organizações científicas que tanto desprezam. Este culto do empreendorismo dá o tom ao conto, que acaba por ser uma insossa especulação com boa base científica.

Periapsis: É assim tão desejável competir por um lugar numa sociedade próspera mas fechada? Numa competição que implicar largar tudo para arriscar uma hipótese remota? O conto de James Cambias extrapola para um futuro próximo o sonho recorrente dos libertários que de volta e meia vêm propor nações flutuantes que lhes permitam auto-governar-se longe da tirania dos estados democráticos. Cambias leva-nos a um sistema solar em colonização e a Deimos, lua marciana cuja localização estratégica a transforma num núcleo central das viagens pelo sistema solar. Neste ponto nevrálgico emergiu uma sociedade cooperativa libertária fechada, que aceita apenas aqueles mais meritórios entre os meritórios. E, magnânima, abre por ano uma vaga para o vencedor de um concurso exigente que obriga os concorrentes a largar tudo e apostar numa vitória ao longo de uma dura série de testes intelectuais cujas soluções, normalmente ideias lucrativas, revertem não para os criadores mas para os promotores do concurso. A pergunta óbvia - porque é que os melhores e mais brilhantes hão de se dar ao trabalho de competir por uma vaga numa sociedade que se aproveita deles como drones de trabalho escarvo, acaba por ser feita no final do conto. O cerne é a competição, e Cambias aproveita para umas especulações interessantes sobre manufactura aditiva, solucionismo tecnológico e criatividade potenciada por tecnologia. Mas não escapa à fé inabalável em meritocracias que se assumem livres mas exigem o consenso total daqueles que nelas participam. Necessidade essa geralmente explicada com um "reparem, mas é melhor assim, vejam a nossa prosperidade, e se questionarem, não têm lugar entre nós". O curioso no conto é que dois dos personagens realmente questionam, e concluem que se podem estar em todo o sistema solar para quê submeter-se aos ditames do colectivismo libertário?

The Man Who Sold The Stars: Gregory Benford consegue um momento brilhante de idealismo de hard SF. A páginas tantas, ainda no início deste longo conto, um dos personagens dispara esta pérola de futurismo nostálgico da era espacial: Why not go to the stars? Because we are the descendents of those primates who chose to look over the next hill. Because we won't survive on this rock indefinitely. Because they're there.. O que se segue é uma especulação informada sobre tecnologias e meios de exploração que permitam realmente à humanidade expandir-se para as estrelas. Começa com a mineração de asteróides e progressivas colónias na lua, em órbita e nos planetas, equilibrando os passos em direcção às estrelas com a sustentabilidade económica. E reside aqui o pior do conto de Benford, que me deixou pessoalmente estupefacto com a cegueira de um dos mais distintos cientistas e escritores contemporâneos de FC. Fiquei com a sensação que Benford foi convidado a passar uns dias com Elon Musk (bilionário, fundador da SpaceX e da Tesla Motors, uma espécie de Tony Stark da vida real) e saiu de lá tão deslumbrado que passou a defender o caudilhismo capitalista como a melhor forma de fazer progredir a ciência, a tecnologia e a sociedade. Todo o conto é uma longa diatribe contra supervisão política ou institucional, contra regulamentações, uma defesa libertária do retirar limites económicos e legais para que os empreendedores esclarecidos possam puxar a humanidade. Surpreende, este deslumbramento com algo tão problemático e que parte da premissa errada do solucionismo empreendedorista. Benford omite, ou faz por esquecer, que para cada Elon Musk como bilionário que investe fortemente em tecnologias que expandem as possibilidades de futuro há dezenas ou centenas de irmãos Koch, a financiar activamente governos para que estes desinvistam em ciência e tecnologia, piorem as condições sociais, facilitem os desmandos do grande capital e censurem aqueles que se atrevem a falar de desigualdades ou aquecimento global. Esta lista poderia continuar. Não que Benford seja imune às desigualdades, que relativiza como umas massas humanas que colocam pressões injustas sobre os seus governos que se vêem obrigados a atrapalhar os meritocratas para poder financiar os desejos injustos das massas de desperdícios humano. A coisa só se resolve com colapsos que extinguem boa parte destas massas. Percebe-se, a perfeição económica neo-liberal automatizada com tecnologia funciona melhor com quantos menos humanos envolvidos tiver. Bastam os meritocratas empreendedores e os seus servos com conhecimentos de engenharia. Tudo o resto é descartável. Benford faz questão de sublinhar várias vezes as vantagens da robótica assinalando que robots não se cansam nem se reformam, trazendo à tona o pior do capitalismo tecnológico que vê a mão de obra humana como uma menos valia precisamente porque é obrigado a reconhecer os seus direitos elementares. Recordam-se dos intelectuais dos anos 50 que foram convidados a ir visitar a União Soviética e vieram de lá deslumbrados pelo progressismo do sistema soviético (não escrevo "comunista" porque há uma grande diferença entre o comunismo e o regime soviético, tal como, por exemplo, entre o islão e as islamocracias ou a tradição democrática humanista/iluminista e as correntes democracias reféns de elites financeiras)? Cegos perante os gulags, imunes ao registo histórico dos massacres e purgas, levados apenas às vilas potemkin do regime, fascinados com um progressismo vermelho que de facto servia apenas para disfarçar os desmandos dos elementos sedentos de poder do regime? Benford faz o mesmo, desta vez deslumbrado com as possibilidades do capitalismos empreendedorista tecnólogo, esquecendo deliberadamente que as tecnologias que alicerçam e tornam possível este tipo de capitalismo foram (e são) desenvolvidas em instituições públicas. Que as regras que tanto gosta de desconsiderar existem, em grande parte, para assegurar a segurança dos envolvidos. Fiqui abismado ao ler, por exemplo, a defesa do fim das restrições às detonações atómicas na atmosfera para que sistemas de propulsão do tipo Orion sejam desenvolvidos, na fantasia que quem o fizer fará certamente sem falhanços. Doutros autores afirmações destas não fariam mossa, mas Benford é cientista. Deveria saber melhor. Não deixa de ser um excepcional especulador, com sólidas extrapolações de tendências tecnológicas, mas espalha-se na defesa desde idealismo que mais parece saído da The Economist ou do Financial Times do que da ficção científica. Sejamos honestos: queremos mesmo deixar as rédeas do futuro da humanidade entregues aos caprichos de carismáticos caudilhos? Suspeito que quem defende este ideário não aprendeu nada com a história humana, que durante milénios andou dependente precisamente das castas aristocráticas esclarecidas, e não foi muito longe com isso. Escrevo isto correndo o risco de ser injusto para com algumas figuras marcantes que são de facto carismátias e põem os seus milhões a trabalhar para o bem de todos. Para as estrelas, até, caso do intrigante Elon Musk que é talvez a influência mais visível neste conto. Mas esses são uma ínfima minoria. Ou isso, ou Benford mimou-nos com uma fina ironia com o neo-liberalismo a substituir as pulsões totalitárias heinleinianas.

Entanglement: Este conto de Vandana Smith quebra o fio condutor de caudilhismo tecnológico carismático a seguir uma linha decisiva. O desafio aqui é reverter os efeitos do aquecimento global e não há soluções únicas, antes uma teia de soluções locais para problemas específicos que formam uma vasta resposta global. A suportar a teia está uma rede social diferente, onde não se partilham estados em busca de gostos fugazes mas que coloca em sintonia a empatia de pessoas em locais geográficos díspares. O pensamento momentâneo de alguém que simpatiza com o sentimento de inquietude de um outro distante é a faísca que gera acção, quer seja o não perder os sentidos nas águas geladas de um ártico povoado por bactérias geneticamente modificadas, perceber o papel da arte urbana para aplicar arquitectura verde numa metrópole moderna no meio do amazonas, não se render à velhice e investir no activismo ambiental no meio do Texas ou encontrar-se entre as ruínas de um mosteiro tibetano. Destaca-se por sublinhar a diversidade de soluções, aplicando o conceito de inteligência distribuída.

Elephant Angels: Outro conto que aborda o conceito de inteligência distribuída, centrado numa rede global de volutários apoiada em drones que vigia os parques naturais africanos, prevenindo ataques de caçadores e comerciantes de marfins ou desenvolvendo esforços frutuosos para os levar à justiça. Brenda Cooper sublinha bem o espírito cooperativo potenciado pela internet, extraplado para um futuro onde tecnologia pervasiva e redes digitais globais se tornam numa arma de resposta imediata em apoio à conservação da natureza.

Covenant: Elizabeth Bear lega-nos um conto muito hermético e bem construído sobre um ex-psicopata assassino que se descobre presa de outro psicopata. Mas não se trata de nenhum conto de suspense policial, antes uma especulação informada sobre a capacidade da bioquímica aplicada à medicina de modificar o comportamento dos indivíduos, alterando profundamente as suas formas de ser e pensar ao nível cerebral mais elementar. Bear não se fica pelo suspense policial nem pelo deslumbre especulativo entre a genética e a medicina radical. A despersonalização, a intencional troca de personalidade forçada pelos químicos e terapias tem fortes implicações éticas a que a autora não se esquiva. Mesmo sabendo que estamos perante um criminoso reabilitado, as implicações morais e de liberdade de consciência destas possibilidades incomodam.

Quantum Telepathy: Rudy Rucker opta por nos mergulhar numa das suas estranhas doses de surrealismo científico. Estamos num mundo pós-fim do petróleo, e a tecnologia é algo de orgânico, feita de matérias bio-cibernéticas que se adaptam às necessidades dos seus detentores. Um homem de negócios decide ir mais longe, vendendo bio-consctructos de matriz quântica que estão impregnados por personalidades humanas, provocando surtos de telepatia que se transmitem de forma viral. A conclusão, bem humorada, é óbvia. Ninguém quer realmente saber o que se passa dentro da cabeça dos outros. Um voo típico de Rudy Rucker, dentro daquela estética luminosa de toque californiano com céus azuis, camisas havaianas e tecnologias biomórficas controladas por personagens joviais.

Transition Generation: Se tenho até agora criticado a fé cega de muitos dos autores desta antologia numa estreita visão de empreendedorismo carismático, foi preciso esperar quase até o seu final pelas sátiras a esta visão. David Brin é conhecido pela forma como ao mesmo tempo defende os dois lados desta diputa enquanto nos avisa do resvalar em direcção a uma nova piramidização da estrutura social com os novos aristocratas da finança a ditarem o rumo da sociedade. Neste conto satiriza o espírito de inovação darwinista, o economês bacoco de gestão flexível de organizações, a competição acérrima entre elementos laborais e o espírito artificialmente alegre imposto pela ideologia baseada no marketing que pervade a imagem pública de uma certa vanguarda da tecnologia.

The Day It All Ended: Neste conto de Charlie Jean Anders a ironia é muito mais fina. A ideia de uma empresa carismática cujos produtos caros e de utilidade duvidosa lideram o mercado e são objectos de desejo, empresa essa dominada por um executivo idealista praticante de metodologias de gestão new age, é uma muito óbvia e pouco velada referência satírica ao domínio icónico da Apple na visão da computação de consumo. A crise de consciência de um executivo vindo de organizações não governamentais que tentam salvar o planeta, crise essa antecipada pelo método de planeamento do carismático lider, vem revelar o propósito secreto do lado obscuro da tecnologia: salvar o planeta. Afinal, os gadgets caros e copiados que são objectos de desejo consumista têm naquelas opções que ninguém usa o poder de mudar o mundo, quer através de torres de comunicação que também são capazes de limpar o CO2 da atmosfera, ou acessórios para automóveis que forçam os donos a partilhar viagens e a poupar combustível. Uma sátira brilhante à dicotomia conflituosa entre tecnologia consumista cara e descartável e os problemas ambientais globais.

Tall Tower: Bruce Sterling leva-nos a cavalgar em direcção ao pôr-do-sol neste final excepcional de uma antologia brilhante. Finaliza num círculo perfeito, fazendo-nos regressar à torre em direcção ao espaço do conto de Neal Stephenson que abre o livro. Sterling leva-nos ao futuro, onde o artefacto sempre esteve na memória humana e os dilemas, angústias, esforços e nomes de quem a construiu se desvaneceram. Sterling dá um toque nostáligico que referencia o trans-humanismo da sua clássica série Schismatrix. fazendo-nos intuir que a humanidade trascendeu para o espaço, uma transcêndencia tecnológica que tem o seu quê de religioso. Os humanos em diminuição vivem as suas vidas no planeta, e ao envelhecerem vêm até à torre para serem levados aos céus e transformados, pela ciência avançada que nos é quase incompreensível, em pós-humanos. Um ponto curioso, mas depressa se torna claro que não é esse o ideário que fascina Sterling. Antes, é a ideia da torre como artefacto unificador, em cujo sopé floresce aquele tipo de civilização de fronteira, desenrascada e pós-catastrofista, que traça as suas linhas quase sempre sem seguir os padrões éticos e políticos aceitáveis. Para Sterling a torre, que no conto de Stephenson foi o corolário da engenharia visionária, é um ecossistema que atrai as fímbrias mais estranhas e radicais de uma humanidade que se desvanece, homens e mulheres tenazes que colonizam as reentrâncias da torres mesmo onde a atmosfera é mais hostil, até mesmo na frieza total da orla do espaço. Há algo de Taklamakan, um dos seus melhores contos sobre uma experiência de nave geracional oculta sobre os desertos chineses, nesta visão. E fá-lo que um modo que coloca de parte o cosmopolitismo europeista que tem caracterizado a sua obra recente. Regressa às raízes texanas, com um cowboy pós-wild west, para quem a inevitável transcendência para a pós-humanidade tem de incluir o seu fiel cavalo, e que acaba por levar a cabo um projecto muito másculo de subir toda a torre até ao espaço, montando no seu cavalo. O espírito de fronteira, de rumar ao desconhecido, simbolizado pela iconografia clássica do cavalgar sob o sol poente transferido para os limites da atmosfera, são aqui sublimados por Sterling naquele que é o melhor momento ficcional da antologia.