sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

O Estranho Mundo de Zé do Caixão


R.F. Lucchetti, Nico Rosso (1969). O Estranho Mundo de Zé do Caixão. L&PM Editora.


Um prenúncio do que esperar: misto de sensualide e horror, com a omnipresência do obscuro anfitrião.


Do sincretismo: criaturas amaldiçoadas, esqueletos, altares primevos e bruxas saídas das selvas afro-brasileiras.


Nos trópicos, sê tropicalista, diz-nos este Diabo que não esqueçe o pé de cabra da tradição europeia.


Gatos pretos e cemitérios na noite escura. Mais clássico que isto não há.

Uma enregelada rajada de vento do horror pulp brasileiro dos anos 60. Zé do Caixão, alter-ego gótico-tropicalista do cineasta José Mojica Marins, dispensa apresentações entre os conhecedores do fantástico. Bizarra mistura de terror gótico com o sincretismo afro-brasileiro, misturando elementos do horror clássico vitoriano com as tradições da bruxaria sobrenatural num registo que oscila entre o visceral e o onírico. É algo estranho, mesmo para os padrões das ficções estranhas.

Mais do que um personagem, Zé do Caixão é uma longa série cinematográfica com alguns desvios para a banda desenhada. Conheço pouco, não irei falar disso. Sou um apaixonado pelo À Meia Noite Levarei Sua Alma, primeiro filme do personagem que oscila entre o surreal e o brilhantismo do mau cinema. Foi uma boa surpresa encontrar, pelas travessas mais obscurar da internet, este álbum de BD que se inspira no personagem como anfitrião de contos de terror. Álbum este que tem pesos pesados do pulp brasileiro. Escrito por R.F. Lucchetti, o prolífico mestre do terror pulp brasileiro recém-redescoberto pela internet, conta com ilustrações dentro da linha visual do terror clássico de Nico Rosso.

A história em si é um conto algo moralista, sobre um homem que vende a alma ao diabo para salvar a sua filha. É algo ambíguo, porque se trata de um bom homem, prestes a perder o pouco que tem enquanto assiste impotente à agonia dolorosa da filha e ao desinteresse de médicos pouco preocupados com os destinos de gente pobre. No desespero da noite, à beira de um cemitério, cruza-se com uma bruxa repelente que lhe oferece um pacto como a única saída possível. Esse pacto irá trazer-lhe riquezas e a salvação da filha, mas terá um preço irónico, elevado e trágico. Como convém neste tipo de histórias, que, claro, mostram com preeminência as sombras da noite sobre as cruzes que encimam as campas em cemitérios tenebrosos. É um terror muito clássico, apesar de resvalar para o surreal, o deste Zé do Caixão.

Livro curioso, que nos mostra a potência da prosa de qualidade discutível de um mestre do pulp, acompanhado por ilustrações notáveis que espelham bem um estilo datado mas icónico.