quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Um livro real para uma personagem ficcional.


Não sei se foi desafio ou não, mas este post no Que a Estante nos Caia em Cima deixou-me a pensar. Bolas, detesto quando isto me acontece nas alturas menos propícias. Tenho francamente mais que fazer. Não necessariamente melhor, mas mais tenho. Mas os neurónios estão insistentes e nos recantos menos luminosos do cérebro têm andado a magicar sobre isto. Quem poderia escolher? E que livro?

Personalidades públicas ficaram à partida fora das possibilidades. Não tenho paciência para figuras públicas. É um defeito, eu sei. Não, não planeio fazer nada acerca disso. É outro defeito, eu sei. Restam as ficcionais. Mas quais? O meu admirado Raskólnikov? Provavelmente iria chegar fogo ao livro para se aquecer no gelo siberiano. A Olympia? Aquilo apenas aparenta estar vivo, o E.T.A. Hofffman deixa isso bem claro. Duvido que tenha algo a ensinar ao Dr. Caligari, mas talvez um manual de hipnotismo for dummies não fosse mal recebido. Não me convém incomodar as coisas que não podem ser denominadas, ou acordar aquele que dorme sob as ruínas submersas de R'lyeh. Não tenho tempo livre que chegue para me perder em labirintos infindos de horror cósmico. Com o The Doctor não me safo. Já viram a biblioteca da Tardis mais recente? Todos aqueles livros à volta da consola central? E com tanto espaço no interior devem lá caber várias bibliotecas de Babel. Fora de questão.


Resta o meu querido Dylan Dog, o incauto e ineficaz detective dos pesadelos. A imagem fá-lo parecer mais heróico do que realmente é. Ele é um tipo estranho, para detective do sobrenatural. Investiga pouco. As situações estranhas e inexplicáveis cruzam-se com ele. Não tem um arsenal de armas secretas ou encantamentos infalíveis para aniquilar os horrores do além. Até é habitual levar grandes coças destes. Não é mago ou estudante do oculto. Costuma esquecer-se da pistola ferrugenta. Incorpora a estranheza e o onirismo, a paixão pelo fantástico literário e o gosto pela sua cinematografia. Nunca mais termina o modelo de galão que começou a construir em 1986. A campainha avariada do número sete da londrina Craven Road abre-nos a porta para um casarão mágico, cheio de artefactos feéricos e... uma boa biblioteca.

Bolas. Assim é difícil responder ao desafio.

Dylan terá de certeza consigo uma cópia do raro Dellamorte Dellamore. Talvez, numa noite mais solitária, sorria ao sentir-se espelhado na obra . Dylan e o livro partilham o mesmo criador, Tiziano Sclavi. Um daqueles livros que, um dia, gostaria de ter na minha biblioteca. Poderia oferecer-lhe Todas as Cosmicómicas de Italo Calvino, italiano como Dylan, dos primeiros escritores a esbater a fronteira entre literatura vista como séria e os voos imaginários do fantástico. Mas suponho que oferecer Calvino a um italiano seja como oferecer Shakespeare a um inglês. Ou um DVD da primeira época do reality show Big Brother a um holandês. Fui mauzinho, agora. É um defeito, eu sei. Não, não planeio fazer nada acerca disso. É outro defeito, eu sei.

Qualquer coisa de Conan Doyle? Dylan poderia aprender algo com Sherlock Holmes, o seu preciso oposto no que toca a técnicas detectivescas. Mas suspeito que estaria mais à vontade nas selvas primevas de The Lost World. Sei que os modernismos de J.G. Ballard ou William Gibson o deixariam desgostoso. A solidão de Dylan é outra, não se alicerça no modernismo arquitectónico ou na alienação tecnológica. Carnacki The Ghost Finder seria insultuoso para alguém que está constantemente entrançado entre fantasmas, vampiros, espíritos inquietos e outras criaturas de arrepio.


Talvez lhe consiga oferecer algo mais seguro. Um clássico. Deve ser coisa destes gelados dias invernais, uma certa necessidade de ler palavras com cinquenta ou cem anos. Mas um clássico que espelhe a poesia do acaso consciente que tanto admiro em Dylan Dog. Labyrinths, a colectânea editada pela Penguin que me introduziu a Jorge Luis Borges. Não é uma escolha ao acaso. Tiziano Sclavi colocou muito de Borges em Dylan Dog. Na mais encantadora das suas aventuras as pessoas, a cidade e a mulher que Dylan ama se desvanecem sem deixar rasto nem memória, culpa da incúria de um bibliotecário que procura disfarçar os livros comidos por ratos na biblioteca que tem a cargo. Nos livros estão destinos, porque por vezes o mapa é o território.

Está decidido. A biblioteca da casa de Craven Road aparenta ser temível e Borges não será um inquilino estranho. Mas posso sempre tornar especial este livro, escrevendo do seu (talvez) único fã português na dedicatória. Acham que irá gostar?