quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Por Mundos Divergentes: Uma Antologia


(2014). Por Mundos Divergentes: Uma Antologia. Vagos: Editorial Divergência.

As distopias estão na moda, fruto do espírito de um tempo presente que nos parece opressivo e sem grandes perspectivas. Um tempo em que o progressismo se afundou na ganância neoliberal e as depressões financeiras esmagam as populações de um mundo ocidental. Um tempo em que o antigo obscurantismo religioso volta à tona, alimentado por políticas neo-coloniais desastrosas e por uma enorme desconfiança face à ciência e ao conhecimento, porque note-se, o fundamentalismo islâmico não é o único fundamentalismo em crescimento, apenas o mais visível. Um tempo em que os ideais humanistas e liberais da democracia, igualdade e liberdade estão sob ameaça intensa de novos fascismos ou deturpados por elites predadoras. Poderia continuar. Creio que nem sequer mencionei as  consequências alastrantes das alterações climatéricas e aquecimento global. Com isto tudo, como não olhar para este início do século XXI como um momento negro na história humana? Não surpreende, por isto, que a popularidade da distopia enquanto género esteja tão actual. Recorde-se que as ficções especulativas ajudam-nos, muitas vezes, a compreender melhor os desafios do mundo contemporâneo.

Depois do promissor Na Sombra das Palavras, a Editorial Divergência propõe-nos a antologia Por Mundos Divergentes, explorando distopias futuristas em diversas vertentes. Encontramos totalitarismos clássicos, mundos pós-apocalípticos, elitimos pós-escassez ou paraísos psicofarmacológicos. Sem ser uma excelente antologia, mantém um bom nível com contos interessantes que projectam em futuros anseios do presente, com a curiosa regra de se focarem no nosso país. Pode não ser excelente, mas note-se que é destas pedras que se vão construindo os caminhos de uma ficção especulativa portuguesa com cada vez mais qualidade e exigência com ela própria. Note-se que esta antologia, contrariando uma forte tendência entre os criadores portugueses de ficção fantástica, foge à fantasia e assume-se como de ficção científica.

Do livro ainda distinguiria o design de capa, a remeter para a iconografia propagandista dos totalitarismos do século XX. Infelizmente é um nível gráfico que não se mantém nas ilustrações do interior, excepção feita aos ilustradores dos contos Arrábida8, Dispensáveis e Em Asas Vermelhas. Neste, em particular, o toque de estética manga funcionou muito bem.

Patriarca, de Ricardo Dias, abre muito bem a antologia. O conto sublinha um totalitarismo opressivo baseado na hipervigilância automatizada por uma inteligência artificial consciente, num misto de opressão fabril dos primórdios da era industrial com o nosso corrente resvalar para uma sociedade panopticon. A história acompanha as desventuras de um inadaptado ao sistema, que apesar da sua rebeldia individual se descobre uma engrenganem de um diabólico sistema que reconhece a necessidade da dissidência para oprimir de forma mais eficaz. O patriarca do conto é uma entidade artificial, em constante evolução, com olhos em todas as câmaras e tentáculos globais em qualquer sensor. A prosa do autor é escorrida e a leitura rápida e agradável, apesar de se sentir o peso da omnipresença de Orwell, muito citado nestas curtas páginas.

Em Asas Vermelhas é outra boa surpresa. Neste conto de Nuno Almeida a distopia parece-nos pós-apocalíptica, com humanos empobrecidos a viver uma existência miserável na terra doentia à volta das muralhas polidas de uma cidade futurista. Ao longo do conto vai-nos sendo mostrado que houve uma guerra, e que cada povo tem o seu mito. Os citadinos pensam que lá fora se arrastam mutantes radioactivos, enquanto que fora da cidade se imagina que os que se ocultam atrás das muralhas estão irremediavelmente doentes. Mas a cidade, uma Lisboa de arranha-céus e alta tecnologia, está rodeada de zonas radioactivas cheias barracas cujos habitantes sobrevivem nas lixeiras. Só a meio percebemos que a segregação é racial, a guerra antiga uma forma de separar brancos de tudo o resto. A metáfora com as cidades contemporâneas de centros luminosos rodeados por subúrbios problemáticos de cintura torna-se óbvia, apesar da solidez do mundo ficcional. O conto em si é uma história de dissidências e encontros, sob o pano de fundo de revoltas e de uma cidade que quase tem de ser arrasada para perceber a insustentabilidade da sua situação. A história é longa, mas a prosa escorreita do autor, temperada por infodumps bem colocados e momentos empolgantes, mal nos deixa dar pelo passar das páginas.

Dispensáveis, por Ana Nunes é um daqueles contos que já se sabe que caminhos irá percorrer mal se lê os primeiros parágrafos. Um futuro de economias de escassez após o colapso financeiro da União Europeia, caciquismos fascistas, ruína e pobreza generalizada, e uma nova ordem social em que aqueles tidos como inúteis à sociedade são obrigados por lei a ser dispensados, largados para morrer na natureza inclemente. O conto ganha pontos pela coragem da autora em não mostrar a sociedade espontânea dos inúteis e ineptos como algum farol de esperança, seguindo o caminho do desespero completo. A sociedade do fundo é tão ou mais violenta e inclemente do que a do topo. Não há redenções, e os desprezados não hesitam em recorrer ao canibalismo para poder conseguir mais um dia. A reflexão político-social sobre os tempos que correm é bem visível.

Arrábida8 de Pedro Martins é um conto curioso. Arrepiante, a visão de um futuro euroasiático sujeito a ideais de conformidade perante o sistema, punível com um reiniciar de personalidades que elimina as memórias que fazem o ser. Intrigante, o conceito de uma espécie primitiva que sobreviveu nos fundos oceânicos e graças a um cataclismo vulcânico colonizou o estuário do Sado. E muito interessante o imaginar de uma Setúbal e Tróia futuras, mesclando as memórias visuais do presente com um futurismo de sabor asiático. No entanto o conto é pouco coerente. O mergulho no jargão futurista é prematuro, feito antes de termos uma indicação de como está estruturado o mundo ficcional, e o conto intui mais do que revela, ficando algo fragmentado.

Somos Felizes, por Sara Farinha, tem o seu quê de dualismo adolescente em extremos. Num futuro demasiado próximo do presente a obrigatoriedade da felicidade é absoluta. Emoções negativas são consideradas doenças, e aqueles que persistem em sentir tristezas acabam como cobaias de neurocirurgiões que querem perceber o porquê das resistências à felicidade induzida por terapias e químicos. É refrescante ler algo cujo ideário é tão a preto e branco, cheio de absolutas certezas que se esquivam às necessárias gradações conceptuais. Um conto simples e eficaz, que vai sempre muito direito ao assunto e não se desvia um milímetro do seu fio condutor.