terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Interzone #256


Para arranque de novo ano a Interzone não nos traz nomes sonantes, mantendo algumas apostas de continuidade. Algumas, caso de Bonnie Stufflebeam, já se percebem que não terão muito futuro no género. Já Neil Williamson, com a sua prosa clara e ideias bem assentes em mundos ficcionais coerentes, é claramente um nome a manter debaixo de olho. Promete ir longe. Destacaria ainda o editorial, nesta edição a cargo do crítico de vídeo/DVD, que nos leva a reflectir que tiramos muito mais de uma obra cinematográfica do que o elementar gozo de descobrir as intricacias dos enredos. Já a sempre interessante coluna de McCalmont traça o aprofundar de sentidos e crescer da ambiguidade nas estruturas narrativas da ficção científica.

Nostalgia - Bonnie Jo Stufflebeam: arranque pouco auspicioso desta edição da Interzone. A autora tem publicado regularmente na revista, com resultados mistos mas claramente a afastar-se da FC como cerne narrativo e a usar os elementos do género como decoração cada vez mais ténue. É o caso deste conto, em que o possível elemento FC estará na personagem talvez transexual, de género indefinido. Essa ambiguidade nunca explicada mantém-se em ponto de fundo numa história onde a amante desta personagem regressa à cidadezinha americana que a viu crescer. O motivo desse regresso, participar numa cerimónia pela morte de um amigo de infância, merecia ser melhor esclarecido. O amigo afinal não está morto mas o facto de a comunidade o considerar morto poderá indicar que ele, tal como a transexual, não cai dentro de padrões de comportamento normativos e aceitáveis numa comunidade fechada e é por isso proscrito. Mas o conto não segue este caminho. Aliás, o conto não segue nenhum caminho discernível. Insinua algumas ideias que poderiam, sendo exploradas, ser interessantes, mas nada mais.

An Advanced Guide to Successful Price-Fixing in Extraterrestrial Betting Markets - T.R. Napper: este escritor rebentou na #254 com um conto fabuloso de futurismo pós-apocalíptico passado na China. Este não lhe fica atrás, a começar neste título cerebral e complexo que oculta uma história divertida sobre jogos mentais, autismo funcional, fascínio com padrões matemáticos e espécies alienígenas intrigadas com a imprevisibilidade do cérebro humano e viciadas nos jogos de azar. Napper parece claramente ser uma daquelas vozes a prestar atenção.

The Ferryman - Pandora Hope: há algo de tenebroso e sobrenatural nesta história longa onde um viúvo encontra algum consolo nos braços de uma mulher que oferece abraços mediante pagamento. Haveria por aqui muito que explorar, desde a solidão da viúvez às tensões familiares, passando pelo lado fantástico de uma mulher cuja casa se assemelha a uma floresta e um homem cujo passado poderá estar ligado à mitologia nórdica. Haveria, mas o conto não é suficientemente claro para se perceber por onde vai, ou quer ir. Retirem-se os elementos de fantástico e ficamos com uma banal história de solidão na terceira idade.

Tribute - Cristine Gholson: Há algo de inacabado nesta história difusa. Saltamos entre dois pontos de vista. Por um lado o de uma criatura jovem, habitante de estepes desoladas, a tentar tirar sentido do falecimento dos seus progenitores e muito intrigada pelas minúsculas criaturas esbracejantes que algo lhe deixa em aparente oferenda. O outro ponto de vista é a do arquivista de uma cidade milenar, que assiste à tomada do poder por um grupo que invoca ameaças de antanho e envia vítimas sacrificiais através de um portal para apaziguar as divindades ameaçadoras cuja defesa da cidade é a base do seu poder sobre os seus concidadãos. Intrigante, mas o conto é mais eficaz a invocar imagens mentais do que a tornar-se claro no seu mundo ficcional.

Fish on Friday - Neil Williamson: Este escritor também tem surpreendido os leitores da Interzone com contos consistentemente interessantes. Este curto foi, ao que parece, inspirado na recente tentativa de independência escocesa, mas Williamson vai muito mais além, imaginando os dilemas de uma sociedade sob a égide da bonomia de controles sociais potenciados por tecnologia pervasiva. Ou, colocando a questão noutros termos: onde está a liberdade e a privacidade quando a bem da nossa saúde e bem estar as dietas são restritas, somos obrigados a manter comportamentos socialmente aceitáveis e saudáveis, e os dispositivos do dia a dia estão repletos de sensores cujos dados coligidos criam perfis precisos dos hábitos das pessoas? Williamson coloca a questão em tom de bom humor, com uma velhota ex-hactivista a levar um puxão de orelhas da agência para a saúde e bem estar por não ver uma televisão cheia de programas desportivos e ter dado a volta aos sistemas do frigorífico para mandar vir bifes em vez dos filetes de peixe transgénico considerados benéficos para a saúde, clima e sociedade. Sorrimos, mas há aqui implicações reais da convergência entre moralismos sociais, proliferação de sensores internet of things e o interesse específico de organizações. Mesmo nos mais suaves sonhos dos proponentes do Big Data/Internet of Things, a mão do Grande Irmão está presente. Pesada, mas com um sorriso, enquanto nos diz que as restrições aos comportamentos considerados desvios à norma são necessárias para nosso bem.