quarta-feira, 29 de abril de 2015

Mucha


David Soares, Osvaldo Medina, Mário Freitas (2009). Mucha. Lisboa: Kingpin Books.

O absurdismo violento e obscuro de Kafka está aqui em sublimação pelo imaginário telúrico de David Soares. Estamos algures na europa oriental, primeva e rodeada de florestas. O porquê de vermos a cultura da europa eslava como selvagem e primitiva é toda uma outra história de premissas geopolíticasintencionais do império austro-húngaro que acabou por se instalar como preconceito aceite, e que não vem ao caso deste livro, embora também algo disto nele esteja presente. Estamos numa aldeia rural, isolada, num mundo a ferro e fogo pela guerra nazi, onde uma mulher prestes a dar à luz se apercebe que todos os seus vizinhos sofrem de profundas dores de cabeça e descobrirá, para seu horror, que se transformarão de forma inexplicável e súbita em moscas. Nada de longas transformações viscerais, apenas um acordar para um mundo irremediavelmente alterado. Nas redondezas da aldeia, felizmente, anda um einsatzgruppen a levar a cabo a sua missão sagrada de extermínio cujas balas saídas dos canos ainda quentes de abater judeus que cavaram a sua vala comum vão fazer muito jeito para aniquilar a infestação de moscas gigantes que, após morrerem, regressarão à sua forma humana.

Se o absurdismo Kafkiano, com algum toque mais subtil de um body horror que remete obrigatoriamente para Cronenberg, são os pilares deste livro não consigo deixar de escapar à reflexão sobre ao horror da guerra. Sendo mais específico, ao horror da matança industrializada em nome de uma ideologia insana que tratou as suas vítimas como menos do que insectos. Sob a bota cardada nazi (e de outros totalitarismos ao longo de uma história humana que se repete, sob bota, cruz, crescente, folha de cálculo ), as suas vítimas são reduzidas à condição de sub-humanidade, cujas vidas valem menos do que as das incómodas criaturas rastejantes do mundo dos insectos.