segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Fórum Fantástico 2017: Escolhas Literárias


Mais um ano, mais uma edição do Fórum Fantástico. Se de si já é algo a celebrar, este ano a equipa do Rogério Ribeiro e João Morales surpreendeu todos com um evento renovado, mais dinâmico e diversificado. Uma aposta arriscada mas ganha, como se sentiu nestes três dias na Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro. O meu registo e reflexão sobre o saldo final da décima primeira edição para o aCalopsia ainda vai aguardar, mas deixo já o registo da seleção para o painel Escolhas Literárias do Ano, o já tradicional ponto de encontro do "tio" João Barreiros e seus admiradores sobrinhos. A Cristina Alves publicará em breve no seu Rascunhos a lista completa de escolhas, com as listas do Barreiros, dela e minha. Como habitual, partilho aqui a minha lista, com as curtas reflexões sobre as obras escolhidas.

De fora, ficaram algumas escolhas, porque o painel ia longo e o importante é dar espaço às leituras do João Barreiros. Retirei Pirate Utopia de Bruce Sterling, Cidades: TLS Series 1, e O Físico Prodigioso de Jorge de Sena. E, inexplicavelmente, deixei de fora uma das melhores coisas que vi nos últimos tempos, o perturbador spot do MOTELx deste ano, com argumento de Carlos Silva. Foi daquelas obras que desde o primeiro minuto pensei que teria de destacar, pela forma como foge ao consenso do terror como espectáculo de mestria de efeitos visuais numa direção profundamente inquietante, mas que acabou por se perder nas correrias do dia a dia.


Este ano, outra novidade: ao ver o gosto que o João Morales teve com o impacto da transmissão em streaming  da apresentação do programa do Fórum na FNAC Chiado, acabou-se por fazer o mesmo a praticamente todas as sessões que decorreram no auditório. A das Metamorfoses Musicais do Morales, ironicamente, foi uma das poucas que escapou, por um misto de atraso meu e ter achado que transmitir ao vivo um painel onde o João partilhava vídeos musicais poderia ser terreno minado. O que significa que podem ver, ou rever, o tradicional painel. Como a transmissão foi dois em um, fiquem para o seguinte, um momento muito awesome de discussão sobre inteligência artificial com a participação de Leonel Moura.

Ok, estou a divergir. Onwards para as escolhas.

Escolhas Literárias do Ano: Fórum Fantástico 2017

Livros: Não Ficção

Homo Deus - Yuval Harari: O transhumanismo é revisto num livro que foge quer ao optimismo inocente ou ao pessimismo apocalíptico das reflexões futuristas. Sublinha que se damos por garantido que a rápida evolução tecnológica irá transformar modos de viver e economias, também afectará as normas sociais e éticas que consideramos imutáveis.

Livros: Ficção Científica e Fantástico em Português

Anjos - Carlos Silva: Com este romance, Carlos Silva cimenta o seu estatuto como uma das mais dinâmicas e interessantes novas vozes do panorama literário nacional dedicado à FC.  Esforço concertado e bem sucedido de criar um mundo ficcional sólido que sustenta uma história que, se remete diretamente para o cyberpunk clássico, acabar por tocar no âmago de questões estruturantes da nossa sociedade digital contemporânea.  Surpreende pela sua ambição e seduz pela forma como conduz a ação pelos seus pressupostos. Fundamentalmente uma história de ação, não se nega a reflexões com impacto direto na nossa perceção do mundo contemporâneo.

As Nuvens de Hamburgo - Pedro Cipriano: Uma belíssima surpresa. Oscila entre a banal história de libertação de uma jovem adulta e as feridas traumáticas da II guerra. Lê-se ao ritmo de um thriller, com o aprofundar das relações humanas entre personagens a ser pontuado por uma progressiva espiral descendente de mistério em viagem não intencional no tempo.

Lovesenda - António de Macedo: O fantástico em Macedo sempre foi peculiar, misto de história com esoterismo, longe da iconografia expectável do género. Não que não abundem fantasmagorias ou monstros nesta obra (aliás, um dos grandes protagonistas é um fantasma de um homem monstruoso, castigado com o vaguear num limbo, e que irá despertar o verdadeiro amor no coração de Lovesenda, sua viúva num casamento estranhamente consumado), mas o ideário deste autor leva-nos mais para os campos da gnose, dos mitos ocultistas e alquímicos. É esse o cerne da história, com os seus rituais, damas encantadas, saberes tenebrosos, mistérios das brumas e saberes milenares contidos em códices proibidos. 

FC e Fantasia Internacional


Normal - Warren Ellis: Como é que se penetra num local impenetrável? Normal é um porto de abrigo, asilo para futuristas profissionais mentalmente afetados pelos seus estudos sobre hipóteses de futuro. Olhar para o mundo, para os sistemas que o compõem, as colisões entre tecnologia de ponta e sociedade contemporânea, é olhar para o abismo. E quando olhamos para o abismo, o abismo pode olhar para dentro de nós e fulminar-nos. Normal é o local onde os futuristas demasiado danificados para funcionar em sociedade vão para recuperar, um hospício para loucura induzida por exposição às franjas radicais da especulação. Um local isolado, penetrado graças a um enxame de nano-drones que assume forma humana para vigiar as mentes especulatórias dos futuristas em recuperação. Um voo curto de Warren Ellis, talvez a exorcizar as suas experiências como conferencista em festivais de cultura radical contemporânea e futurista.

O Grande Baro e outras histórias - Virgilio Piñera: Estes contos caracterizam-se por um delicioso surrealismo macabro, com fortes doses de humor muito negro e uma iconografia que por vezes roça o diabólico. Histórias curtas, absurdistas, que exploram as pequenas estranhezas da vida levando-as por caminhos inesperados. O absurdo surreal é complementado por um forte sentido de carnalidade, nestes contos de crueldade subtil.

The Stars are Legion - Kameron Hurley: A clássica space opera é revista neste livro onde a biotecnologia assume o papel normalmente pertencente às ciências Hard. Os planetas são de facto estações espaciais, mas são tecnologias vivas, tudo no universo deste livro são biotecnologias. Naves, armas, utensílios são formas de vida ou excreções de formas de vida, parte integrante do ecossistema das naves-planeta. Como iremos descobrir ao longo da leitura, os próprios humanos são elementos do ecossistema, essencialmente utensílios ao serviço da nave, embora se julguem controladores dos ambientes em que habitam. É por isso que não há homens nesta história. As mulheres, os seus úteros, são utensílios ao serviço das naves, produzindo os bens, materiais ou elementos de que a nave necessita. Que podem ser outros humanos, ou peças de equipamento. A simbiose é tão completa que a morte implica a reciclagem dos elementos corporais pela nave, tornando-se nutrientes que irão alimentar os seres vivos no seu interior.

Banda Desenhada/Comics

Dylan Dog: Mater Morbi -  Roberto Recchioni, Massimo Carnevale: Personagem de culto da banda desenhada italiana, Dylan Dog é finalmente trazido para Portugal numa edição Levoir da coleção Novelas Gráficas. Para este primeiro contato do público português com um dos mais intrigantes títulos de fumetti da editora Bonelli, os editores da Levoir escolheram Mater Morbi, uma das mais perturbadoras histórias recentes desta longa série. Mais do que uma história de horror clássica, ou uma aventura típica do Old Boy a enfrentar vampiros, zombies ou outras criaturas da noite, Mater Morbi mexe com o horror interior da implacabilidade da doença. O fetichismo de Mater Morbi é a metáfora para os sentimentos de solidão e impotência face à decadência da doença. Uma história atípica de um personagem já de si atípico, com estatuto merecido de culto. O argumento brilhante e premiado de Roberto Recchioni ganha uma vida lúgubre na ilustração expressiva de Massimo Carnevale, num poderoso trabalho de luz e sombra que confere um enorme peso à história.

Apocryphus Volume Um: Uma nova publicação independente dedicada à banda desenhada portuguesa é sempre de saudar, e pelo que revela nesta primeira edição, a revista Apocryphus promete trazer banda desenhada de qualidade ao seu público alvo. As histórias da antologia estão bem conseguidas e os estilos visuais refletem a maturidade dos seus autores.

Man:Plus - André Lima Araújo: Man:Plus veste muito bem e sem medo as suas referências. É um trabalho assumidamente derivativo, feito como homenagem ao cyberpunk clássico, ao mangá de FC e às séries policiais procedimentais. Não copia à sorrelfa elementos destes géneros, tentando passar-se por obra nova e inédita. A cópia é visível, intencional e assumida. Se a história é original, não tem medo de citar estilistica, temática e visualmente as influências que claramente fascinam André Araújo. Na fronteira entre obra de mérito próprio e fan fiction erudita, Man:Plus é uma declaração de amor ao cyberpunk, fantasticamente ilustrada.

Revista H-alt: Continua a ser um veículo de edição para os mais recentes autores de BD portuguesa. A H-alt consegue um curioso misto entre juvenilia e qualidade, percebe-se a pouca sofisticação e inexperiência patentes na maior parte das histórias, mas também se percebe a garra e vontade de melhorar. Nisso, o trabalho de editor tem sido mais cuidado. Se nas primeiras edições havia uma sensação de qualquer coisa seria publicada, nas mais recentes notam-se critérios de qualidade. Claro que, no âmbito da publicação e no formato narrativo curtíssimo, não podemos esperar É este o real papel de incentivo que a H-alt trás ao panorama da BD nacional.

Paper Girls - Brian K. Vaughn, Cliff Chiang: Tocando em múltiplas vertentes, esta série escrita por Brian K. Vaughan diverte pela forma como aborda uma temática de ficção científica. A ilustração sólida de Cliff Chiang e o irrealismo do trabalho de cor de Matt Wilson dão a Paper Girls uma vertente fortemente surreal, ultrapassando o seu caráter de aventura juvenil. Uma boa surpresa para os leitores portugueses, quer sejam mais fãs de banda desenhada, quer de ficção científica.

Cinema


Valerian: Besson explora muito bem o lado space opera barroca da série, num filme visualmente deslumbrante, que leva ao extremo aquela estética de FC entre o surreal e o psicadélico tão em voga nos anos 60 e 70. É-nos impossível ficar indiferentes ao poder da imagética avassaladora posta à solta por Besson, ao ponto da sobrecarga visual.  A estrutura linear de um filme blockbuster não se adapta bem à vastidão deste universo ficcional. A vénia de simplificação para o público não europeu, com um foco excessivo e a roçar o lamechas na relação amorosa entre Valérian e Laureline, sente-se como oca e  prejudicar o filme. Essencialmente, Besson esforça – se demasiado para nos convencer que este clássico da BD francesa é fixe.

Ghost in the Shell: Tinha tudo para se tornar um excelente filme, fazendo o cyberpunk old school regressar à memória visual colectiva contemporânea. Mas falha, vítima de um trabalho de realização desconexo, que opta por um misto de técnica de telenovela com mau filme de acção. Infelizmente, na arte do cinema, a realização é o fio que une todos os elementos. Por excelentes que sejam, e este filme tem elementos assombrosos, se a união é desconexa o filme falha. Cenas de acção cansativas, momentos dramáticos que não conseguem transmitir os dramas dos personagens, diálogos filmados a estragar a continuidade, as mesmas cenas filmadas de três ou quatro ângulos diferentes mostrados em justaposição.








Séries



Rick and Morty: Dinâmica ao ponto de hiper-cinética, esta é talvez a melhor série de FC com comédia dos últimos tempos. Cada episódio de Rick and Morty é um mergulho delirante num cocktail destravado de conceitos FC. Esperem tecnologias bizarras, alienígenas exóticos, mundos paralelos, civilizações extraterrestres e piadas de ir às lágrimas. Cada episódio é uma montanha russa implacável, sobrecarregando os sentidos do espectador.

Expanse: Adaptando fielmente a série literária, traz de regresso ao pequeno ecrã a estrutura da space opera clássica. A transição de livro para ecrã foi feita com tanto cuidado que o mundo ficcional não perdeu qualquer elemento. Os valores de produção são elevados, acima do habitual, especialmente para o Sci-Fi Channel, que nos habituou ao mau GCI de tempestades de tubarões. A equipe de actores transfere muito bem a dinâmica dos personagens.

The Orville: isto é ou não é Star Trek? Seth McFarlane decidiu, e fez-se. Uma série de ficção científica cómica, centrada nas aventuras da nave exploratória Orville, que tem como mandato explorar as fronteiras da federação galáctica. Como comédia falha redondamente, é uma sitcom melodramática muito desinteressante. Com FC... digamos que é tão, tão similar a Star Trek que se sente que se está a ver episódios da lendária série.